Infância roubada pela tragédia

Infância roubada pela tragédiaVítimas // O destino do bebê de Eliza, supostamente com Bruno, repete histórias de filhos que tiveram mães mortas pelos pais


Renata Mariz

renatamariz.df@dabr.com.br

Brasília - Mais um episódio de atletas milionários envaidecidos pela fama e pelo dinheiro numa vida desregrada. Prova cabal da violência covarde de homens contra mulheres. Inúmeras são as reflexões que o caso do goleiro do Flamengo, Bruno, pode suscitar.

Nathália e o irmão Zaldo convivem com a lembrança que o pai matou a mãe e atentou contra a vida dos dois . Foto: Fellipe Castro/Esp. Aqui PE/D.A Press

Mas quando tudo acabar, e o assassinato de Eliza Samudio for elucidado, restará uma história triste e cruel para o verdadeiro pivô do crime: o bebê que a jovem teimava ser de Bruno. Batizado de Bruninho, o menino de cinco meses poderá ser mais um entre tantos brasileiros órfãos de mãe por causa do pai. Ninguém sabe quantos são, mas dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres, com base nos 51.354 relatos de violência recebidos pela central telefônica, de janeiro a maio de 2010, mostram que 30,3% das agredidas têm um único filho e 28,2%, dois. Representa pelo menos 44.522 pessoas, entre crianças e adultos, com mães apanhando de pais, padrastos, namorados ou companheiros. Quase 70% dos filhos presenciam a violência.Os herdeiros dessas tragédias abrem o coração para contar como encaram suas histórias.

O exercício do perdão

A voz da irmã, Luana, anunciava uma verdade pouco crível. "Quando atendi o telefone, ela disse: 'Acho que meu pai matou minha mãe'", lembra Elaine Araújo Damacena. Chegando ao Lago Azul, no Distrito Federal, o que parecia um engano se confirmou. A salgadeira de 25 anos foi informada por policiais que João da Silva Pereira Damacena não só tinha tirado a vida de Luzia Ricardo Araújo, como serrou o corpo da mulher com quem era casado havia 26 anos. "Tudo escureceu e eu desmaiei", diz. Passada a tristeza, ela, hoje, tenta ajudar o pai, preso em flagrante, em abril passado.

"Não tenho raiva. Acredito quando ele diz que não lembra do que fez, que não via minha mãe e sim um homem alto e barbudo. Já minha irmã não quer saber dele e eu respeito", diz. Católica, a filha de Luzia e João sempre visita o pai na cadeia e atribui o ocorrido a uma influência demoníaca. "Ele não teria coragem de fazer uma coisa dessa em sã consciência. Quando bebia, ficava diferente, discutia com ela, mas nada perto disso", garante. A preocupação dela é como contar ao filho de 7 anos. "Não deve ser antes dos 7 ou 8 anos, nem depois dos 13, 14. Uma hora será preciso contar, ressaltando que ninguém sabe o que ocorreu no momento, que o pai se arrependeu do que fez. Enfim, tentando transformar algo doentio em minimamente digerível", diz a psicoterapeuta Márcia Mossurunga.

"A gente namora, se casa e ele mata a gente"

Eis a definição usada por Nathália Just Teixeira, quando criança, nas sessões de terapia, para definir o ciclo natural dos relacionamentos. A moça de 25 anos presenciou, quando tinha 5, o pai, José Ramos Lopes Neto, matar a mãe, Maristela Just, em 1989, no Recife (PE). O homem também atirou contra ela, o irmão, Zaldo, e um tio. Todos sobreviveram, menos Maristela, baleada com três tiros na cabeça. De tão nítidas, as lembranças de Nathália ajudaram na condenação recente do pai, 21 anos depois. "Infelizmente minha memória em relação ao dia não se apagou. Por outro lado, pelo menos pude colaborar como testemunha", diz.

Ela ainda consegue contar com riqueza de detalhes o que ocorreu, mas destaca que alguns pontos vão ficando "embaçados" pelo tempo. "As imagens são coloridas, mas não têm som", descreve. Sobre o homem que tirou a vida da mãe, condenado a 79 anos de prisão e atualmente foragido, ela não alivia. "Em toda a minha existência, convivi com a impunidade. E até com coisa ruim a gente se acostuma. Mas agora que houve o júri, quero que ele vá para a cadeia. Rezo para ele ser encontrado. Meus sentimentos têm vindo com uma ira, coisa que antes não acontecia", conta.

Por conta do tiro que levou do pai, Nathália tem a mão direita um pouco maior que a esquerda e os movimentos parcialmente comprometidos. Zaldo foi atingido na cabeça e tem o lado esquerdo do corpo paralisado. "Eu podia ter nascido com esse déficit. Ou ter sido baleado em um assalto ou ter caído de um cavalo. Mas saber que foi seu pai que fez isso é muito ruim", desabafa o jovem de 23 anos.

Sobre pais e monstros

Quatro anos livre de um marido agressivo, três vivendo um namoro saudável e com um bebê na barriga. A felicidade da gravidez de Roberta* se estendia às filhas Mariana* e Cristina*. Tanto que o último diálogo da mais velha com a mãe foi dirigido ao futuro irmão. "Eu tinha esquecido de dar boa noite para ela. Aí, levantei da cama, fui lá e falei: 'Boa-noite, mãe. Boa-noite, Carlos* ou Juliana*'", conta Mariana, 11 anos, repetindo os nomes que o bebê receberia. Em maio passado, porém, Roberta foi encontrada carbonizada dentro de pneus, no Novo Gama (GO), a 46km de Brasília. O principal suspeito é o ex-marido, hoje preso.

Cristina, 9, resume-se a chorar a morte da mãe. Mais crescida, Mariana se revolta com o que ocorreu. "Agradeci a Deus por ter colocado ele na cadeia. Agora Ele tem que nos ajudar para que meu pai fique o resto da vida lá", diz. O passado de agressões vivenciado por Mariana e Cristina durante os nove anos de casamento da mãe com o pai, segundo o psiquiatra Bruno Mendonça, serve como resistência adicional às intempéries da vida. "Se uma tragédia ocorre com uma criança que já enfrentou dificuldades, ela pode lidar bem com tudo isso", diz o médico. Entretanto, ele destaca que as reações são muito individuais. Até questões biológicas de formação cerebral pesam para definir o grau de impacto que tal situação provoca na vida dos filhos.

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