O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), apesar de ignorado pela população e autoridades, ainda é um importante instrumento para que sociedade e estado possam buscar superar essas formas de violência, entendendo crianças e adolescentes como protagonistas desse cenário que geralmente têm seu crescimento e desenvolvimento prejudicado, resultando em menor desenvolvimento social como um todo.
Pode ser considerada violência infantil todo ato ou omissão cometido por pais, parentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima; uma transgressão no poder/dever de proteção do adulto e da sociedade em geral.
Em muitas sociedades antigas, a prática do infanticídio era permitida, cabendo aos pais decidir se aceitariam ou não o recém-nascido. Por outro lado, o avanço da história tem mostrado uma mudança de mentalidade no sentido de aplicar sanções da sociedade a esse tipo de atitude. As primeiras leis de proteção à criança de que se tem conhecimento datam do século IV, mas o infanticídio só passou a ser encarado da mesma forma que o assassinato de um adulto a partir do século XII.
A violência contra a criança e o adolescente, para além da autoridade extrema dos pais sobre estes, está muito vinculada ao processo educativo. Em sociedades mais primitivas até mesmo o apedrejamento era considerado uma medida de educação, e não faz tanto tempo que abandonamos a palmatória. Ainda hoje, há pesquisadores que questionam se somos realmente mais respeitosos com nossas crianças que essas sociedades primitivas.
Apresenta-se pra nós não só o desafio de combater esse tipo de agressão, mas compreender que essa violência tem fundamentos históricos, é passada de pai para filho, há séculos.
No caso específico do Brasil, faremos uma abordagem das principais expressões de violência contra a criança e o adolescente.
Violência Estrutural
É aquela que incide sobre a condição de vida desses indivíduos, tornando seu desenvolvimento mais vulnerável. Essa violência já se apresenta "naturalizada", porque é instituída socialmente. As pessoas tendem a pensar que "sempre foi assim" e, portanto, "sempre será".
Passam de 20 milhões as crianças e adolescentes brasileiros vivendo em condições de pobreza, com renda famílias inferior a meio salário mínimo per capita (35% dessa população). Em regiões como o Nordeste, esse percentual chega a quase 60%.
É importante entender nesse contexto que a exploração do trabalho infantil, nesse contexto, não é simplesmente um descaso por parte dos pais, mas muitas vezes uma necessidade de sobrevivência.
Outro componente relevante, e a influência de programas de televisão na sustentação de estereótipos que associam o jovem pobre ao crime e estimulam uma sociedade de consumo que os leva, muitas vezes, a envolver-se com a criminalidade em busca de coisas que não podem ter.
Na história recente, chacinas contra crianças de rua tem mostrado qual é a postura de nossos governantes quanto a esses problemas.
Violência Intra-Familiar
É exercida contra a criança e o adolescente em esfera privada. É possível dividi-la em 4 subtipos de suas expressões mais invisíveis:
Violência Física: O uso de força física, causando desde uma leve dor até a tentativa de execução e homicídio. As justificativas para essas ações vão desde preocupação com a segurança, educação ou mesmo a simples hostilidade. Há uma estimativa de que 20% da população infanto-juvenil seja vítima desse tipo de agressão, onde em 80% dos casos os agressores são os próprios pais.
Violência Sexual: Todo ato ou jogo sexual entre o adulto e uma ou mais crianças e adolescentes, tendo como objetivo estimulá-los sexualmente e obter estímulo para si ou outros. Todos os estudos apontam o ambiente famílias como foco desta violência, onde principais autores são padrastos e pais e as principais vítimas são meninas. Algumas das consequências são o abandono precoce do lar. Nas ruas, agressores são frequentemente policiais ou companheiros, e esse tipo de violência pode resultar em gravidez indesejada e até mesmo aborto.
Violência Psicológica: Ocorre com a depreciação sistemática de crianças por adultos, bloqueando seus esforços de autoestima e realização, ou as ameaçando de abandono ou crueldade. É uma relação pouco estudada, mas de efeitos perversos no desenvolvimento infanto-juvenil. Alguns países tem avançado no combate a este tipo de violência, como os EUA, que até cunharam o termo "bullying", e hoje esse combate está sendo internacionalizado com a difusão do termo "bullying". Um dos maiores problemas e que o abuso psicológico ainda é visto pela sociedade como apenas um modo de educar mais rigoroso.
Violência Negligencial: Representam omissões de obrigações da família e da sociedade, de promoverem as necessidades físicas e emocionais de uma criança. Se expressam na falta de alimentos, vestimenta, cuidados escolares e saúde. É difícil de qualificar esse tipo de violência, sobretudo para famílias em situação de pobreza e miséria, onde não depende apenas de vontade dos pais. Por isso, podemos considerar que essa negligência é, também, social.
Se pretendemos combater a violência contra crianças e adolescentes, temos que nos dedicar a compreender o fenômeno com amplitude e profundidade, o encarando em suas diversas formas, e através de perspectivas históricas e sociais. Apenas compreendendo os efeitos dessa violência é que poderemos apresentar à sociedade como um todo a real necessidade de transformações nessas relações.
Seja a partir de ações do setor de saúde, prevenindo e tratando os efeitos da violência, seja na articulação interdisciplinar, envolvendo a educação familiar e escolar, seja na esfera da assistência social, é importante ter em mente que nossas energias devem ser encaminhadas para a construção dos direitos humanos e sociais.
Atuar contra as causas da violência significa também atuar contra a pobreza e a miséria, que sacrificam meninos e meninas, e respeitar seus direitos garantidos pela Constituição e pelo ECA.
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Para saber mais:
Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde
Maria Cecília de Souza Minayo
Rev. Bras. Saude Mater. Infant. vol.1 no.2 Recife maio/ago. 2001