No esforço de corresponder às expectativas dos pais, essas crianças, por vezes, negam a própria infância. O próprio Freud já alertava que pais, de maneira quase narcisística, buscavam compensar através dos filhos a infância perdida.
Se por um lado essa projeção pode conferir a atmosfera necessária de carinho e atenção para o desenvolvimento da criança, por outra pode gerar "pequenos adultos", precoces e desconfortáveis em papéis que ultrapassam suas possibilidades emocionais. No esforço de lhes dar a infância perfeita que não tivemos, podemos criar um ciclo de infâncias sequestradas.
É claro que desde Freud a sociedade sofreu por transformações culturais e tecnológicas, permitindo hoje uma infância criativa e plena de comunicação de um jeito diferente daquela época. Mas não corremos o risco de, por falta (ou excesso?) de cuidado, acabar apagando essa infância, ao valorizarmos apenas atribuições reconhecidas no mundo adulto, como competitividade, independência e uma sexualidade precoce, mas não infantil?
No discurso de Freud sobre o "narcisismo primário", esse em que os pais projetam nos filhos a imagem perfeita que queriam para si, encontramos uma relação de expectativas e fantasias para o que será esse sujeito e o lugar que ocupará antes mesmo do nascimento do bebê.
Percebam, em situações como na dificuldade de vesti-los, já se ouve coisas como "você é teimoso como seu pai", ou numa situação de choro, "ele é nervoso como eu, vai dar trabalho". É evidente que isso não apresenta sentido prático para um ser humano de 900 gramas, pouco responsivo, no entanto, mostram uma amarração simbólica entre o bebê e seus pais, que atribuem a ele sentimentos e características muito além de suas reais possibilidades.
Não é relevante se essas considerações fazem sentido para aquele pequeno indivíduo, mas sim como elas evidenciam que ele não é olhado como esse "humaninho" pouco responsivo de 900 gramas, e sim como um sujeito com lugar insubstituível na progressão de gerações daquela família.
Não se está dizendo que se deva tratá-los como objetos. Pelo contrário, essa relação de criação de significados é fundamental para o desenvolvimento da criança e sua consciência corporal, como afirma a psicanalista francesa Françoise Dolto. Mas o exagero nesse processo, sobretudo numa sociedade como a atual, onde a imagem tem papel fundamental nas relações sociais, pode fazer com que criemos significados impróprios para essas crianças, ao tentarmos projetar nelas o nosso "eu" perfeito.
A sexualidade não é inexistente na infância, mas é uma manifestação de sentimento desorganizada, que precisa da relação de afeto dos cuidadores ao dar a seus estímulos de excitação física um contorno simbólico e afetivo.
A sexualidade infantil ainda é um grande tabu, não apenas por envolver uma infância idealizada em nosso imaginário, mas por envolver a sexualidade, que como um todo ainda é um tabu social. Precisamos atravessar essa barreira da moralidade se quisermos entender processos fundamentais nos quais nós, sobretudo enquanto cuidadores (pais biológicos ou não), somos agentes ativos. Isso, claro, se prezamos pela segurança física e psicológica desses pequenos.
Freud começou a abrir essas cortinas e foi até enfático em suas afirmações acerca dessa sexualidade infantil, mas abriu a perspectiva de que não se trata apenas de um fenômeno "genitalizado", e sim amplo, como é a sexualidade adulta, abrigando relações de afeto e a construção da própria imagem e identidade.
Essa noção desconstrói, também, a ideia de uma condição humana "biológica", instintiva e animal, e evidencia a constituição do sujeito, independente da idade, na relação com seus outros fundamentais. Talvez o que mais assuste nessa perspectiva, é que fica claro o tamanho da responsabilidade desses cuidadores.
Por outro lado, temos de reconhecer que independente do excesso de informação e bombardeamento de tecnologias, essa criança está em desenvolvimento, e construirá sua própria verdade, em seu tempo lógico.
A sexualidade infantil, por fim, choca o adulto com sua própria infância perdida, e o obriga a fazer uma escolha: A reconhecemos e acompanhamos as crianças em seu desenvolvimento subjetivo ou a negamos, para evitar nos depararmos com nossas próprias frustrações, conflitos e desejos infantis.
Essa escolha carrega em si uma outra. A de admitirmos nosso papel enquanto referência numa construção que pode se dar de maneira saudável, mas não está sob nosso controle, ou de tentarmos assumir a função de controladores, abandonando a função de referência e passando a ter função de interferência. E nesse processo, lhes transferimos os traumas que nós mesmos fomos incapazes de superar.
Dizer, portanto, que as crianças precisam manifestar uma sexualidade "mais livre", é prezar por sua integridade física e mental, evitando que se torne um jovem ou adulto frustrado em função de nossas expectativas. Para além do medo de crianças com "sexualidade precoce", devemos abrir os olhos para uma realidade um pouco mais complexa: se queremos adultos saudáveis e seguros, esse cuidado começa no nascimento, com uma relação que envolve, claro, afeto, mas acima disso, respeito.
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[FONTE]
"As teorias sexuais infantis na atualidade", publicado em "Psicologia em Estudo", v. 13.
Silvia Maria Abu-Jamra Zornig, Doutora em psicologia clínica; docente da PUC-Rio.