Representantes do governo, de organismos internacionais e da sociedade civil organizada aguardam com certa ansiedade a aprovação do 2º Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sob aprovação na Casa Civil. A expectativa geral é de que esta versão dê um salto importante em relação à primeira, de 2008, quando, apesar da falta de dados aprofundados sobre o crime, foram desenvolvidas políticas públicas e as diretrizes de enfrentamento nos núcleos e postos municipais e estaduais, além da rede de acolhimento. O que se espera agora é que o país encare o problema munido de armas pesadas.
No passado, compunham o cenário brasileiros vítimas de tráfico no exterior. Agora, as peças do jogo se multiplicam e o contexto é de vítimas estrangeiras no Brasil, brasileiros no exterior e o crime interno, que já aparece fortemente. Daí à definição dos três eixos principais do plano: prevenção, atenção às vítimas e a repressão ao crime. De acordo com o Ministério da Justiça, será um plano responsivo à sociedade.
O tráfico de pessoas é o terceiro crime mais rentável do mundo para as cadeias atuantes, perdendo apenas para o tráfico de drogas e o de armas. Por ano, envolve aproximadamente 2,5 milhões de pessoas traficadas, cujo produto chegou a render US$ 32 bilhões em 2005, de acordo com a Organização das Nações Unidas. Segundo o Ministério da Justiça (MJ), é um fenômeno global, com relatos em pelo menos 127 países. Explora a pessoa humana, degrada sua dignidade e limita o direito de ir e vir. É fruto da desigualdade socioeconômica, da falta de educação, de poucas perspectivas de emprego e de realização pessoal, de serviços de saúde precários e da luta pela sobrevivência.
O Brasil é percebido como país de trânsito, de recebimento e de envio de vítimas para o exterior. Está entre os cinco países com mais registros de casos. Apenas traficados para o exterior, 70 mil pessoas, segundo o Ministério Público Federal.
A gravidade do crime é inquestionável, mas ainda há grande desconhecimento por parte da sociedade. E pior. Segundo a diretora do Departamento de Justiça do MJ, Fernanda dos Anjos, as vítimas não se dão conta de que são lesadas por um crime dessa natureza. “Elas sentem-se enganadas, violadas em um conjunto de direitos, mas reclamam de sua própria sorte, e assumem a culpa dos fatos. Queremos que esse crime ganhe visibilidade para que sejam reduzidos os riscos de as pessoas serem enganadas pelas cadeias criminosas”, observa Fernanda.
Um dos desafios no Brasil é a alteração da legislação para uma tipologia adequada do tráfico de pessoas. O artigo do Código Penal que tipifica o tráfico internacional de pessoas (231) refere-se apenas à exploração sexual, não incorporando o trabalho escravo (tipificado no artigo 149) e o aliciamento para fins de emigração (tipificado no artigo 06). Também não existe tipificação de tráfico internacional de órgãos.
O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), autor do relatório do novo Código Penal, admite a necessidade de aumentar a pena prevista para o crime de tráfico de pessoas e de ampliar os casos que se enquadram nesse crime. Segundo Molon, o relatório final deve ser apresentado nas comissões da Câmara dos Deputados até setembro. O documento deve ir ao Plenário até o final deste ano. As mais recentes alterações no Código Penal, em 2005 e 2009, mantiveram a exploração sexual como condição para tipificação do crime de tráfico de pessoas.
O documento “Trafficking in Persons Report 2009″, da ONU, mostra que a legislação brasileira proíbe grande parte das formas de tráfico de pessoas (arts. 231, 231-A e 149), mas não criminaliza adequadamente outros meios de coerções ou fraudes não físicas usadas para sujeitar pessoas ao trabalho forçado, como, por exemplo, ameaças feitas a migrantes estrangeiros com deportação, caso não continuem a trabalhar de forma sistemática.
“Existe um esforço para que também sejam criminalizadas outras modalidades de exploração”, diz Fernanda. Segundo ela, já foram identificados no Brasil casos para fins de adoção ilegal, casamento servil, servidão por dívida, exploração da prostituição e tráfico para fins de trabalho escravo, remoção de órgãos, entre outras formas do crime que ainda não têm enquadramento como tráfico de pessoas. “E a legislação não está dando conta de perceber e tipificar.”
O tráfico de pessoas está em debate no Congresso. Há duas Comissões de Inquérito Parlamentar (CPIs) simultâneas na Câmara e no Senado, presididas respectivamente pelo deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA) e pela senadora Vanessa Grazziotin (PcdoB-AM). A primeira foi instalada neste ano e a outra, em 2011.
Pesquisa dá o norte
Os dados que hoje dão suporte ao 2º plano foram também revelados pela pesquisa que caracteriza o tráfico de pessoas entre Brasil, Itália e Portugal. O estudo mostrou que muitas vezes os aliciadores se unem às vítimas e elas nem percebem sua condição de exploradas. Mostrou ainda que os motivos para as pessoas deixarem o país, aliados à falta de informação, podem aumentar sua vulnerabilidade lá fora. Pode ser a dificuldade para conseguir emprego, o desejo de viver a experiência de vida fora do país, entre outras motivações.
O trabalho aponta que o crime está presente, como ele se opera, a forma pelas quais as vítimas são aliciadas, os tipos de promessas envolvidas nos processos de aliciamento das redes criminosas, como está sendo o apoio às vítimas, tanto da rede consular como do atendimento ao retorno com medidas de assistência. “Também reforça que é muito importante o processo de empoderamento no momento em que qualquer cidadão brasileiro toma a decisão de migrar, porque temos de partir do pressuposto do direito humano de migrar, que não pode ser ameaçado”, diz Fernanda.
A pesquisa consta do livro “Jornadas Transatlânticas – Uma pesquisa exploratória sobre tráfico de seres humanos do Brasil para Itália e Portugal”, lançado em abril pelo MJ, resultante do projeto Promovendo Parcerias Transnacionais, financiado pela União Europeia.
Uma das conclusões apresentadas no livro é que é fundamental que o tráfico de pessoas seja tratado como um problema complexo. “Isso implica percebê-lo como uma questão que afeta diferentes grupos de maneiras distintas. O material analisado aponta para particularidades afetas ao universo de travestis, transexuais e prostitutas, com possíveis superposições com situações de violência doméstica, exploração do trabalho, redes migratórias tradicionais e pessoas envolvidas com sexo transnacional, entre outras possibilidades de aproximação das potenciais vítimas com as redes de tráfico. Ou seja, não podemos tratar os casos de tráfico de pessoas de maneira homogênea. As políticas públicas devem levar em conta as particularidades de tais grupos e a conseqüente particularidade de suas representações”, diz a apresentação do trabalho.
Campanhas
Fernanda conta que a partir dessa pesquisa o Ministério da Justiça passou a mudar o foco das campanhas de combate ao crime. Ela diz que as últimas versões tentaram assegurar aos que desejam migrar as informações necessárias para que tudo seja feito de forma segura, para que as pessoas não caiam nas garras das cadeias criminosas do tráfico. “As campanhas anteriores eram de alerta. Agora já sabemos como as redes atuam e conseguimos traçar estratégia para evitar que as pessoas se tornem vítimas delas”, diz Fernanda.
Quando há um caso identificado de tráfico de brasileiro no exterior, em geral, o alerta chega ao Brasil por meio da rede consular. As pessoas são recepcionadas pela rede de núcleos e postos. Esses postos ficam em locais estratégicos de entrada e saída do país. Outra forma é a busca ativa, que dá apoio a potenciais vítimas. “A gente foca no público de deportados e os não admitidos, que retornam para o Brasil”
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