No Brasil, combate ao trabalho escravo e enfrentamento ao tráfico de pessoas são tratados como se fossem duas frentes diferentes. Não são. É preciso retomar uma visão integrada e integral do fenômeno da escravidão moderna
21/02/2013
Xavier Plassat
A ler a reportagem “Comissão vai reconhecer exploração sexual como trabalho escravo”, publicada pela Agência Brasil neste terça-feira, 19, cria-se a equivocada sensação de que a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) estaria adotando novo ponto de vista sobre a caracterização da exploração sexual como forma de trabalho escravo.
O debate da Conatrae foi outro.
A discussão, ocorrida na reunião de 19 de fevereiro, foi provocada pela própria Comissão Pastoral da Terra, na sequência da exposição da ministra Maria do Rosário sobre o caso de escravidão na exploração sexual flagrado em Altamira. A ministra destacou como, para dominar suas vítimas, os escravagistas “se utilizam da desterritorialização para enfraquecer suas presas: meninas do Nordeste são levadas, traficadas, para o Rio Grande do Sul, e mulheres do Paraná levadas para o Pará”. Como também maranhenses são levados para os canaviais de São Paulo ou bolivianos aliciados para as oficinas de confecção do Brás. “A mobilidade, o transporte para longe, torna-se forma de dominação”.
O representante da CPT observou que, no flagrante de Altamira, realizado na Boate Xingu, um prostíbulo mantido nas imediações do canteiro de obras da Usina de Belo Monte, a situação das pessoas resgatadas – entre elas várias jovens e adultas trazidas do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina – deixou, entre outras, uma questão sem resposta: por que essas pessoas não teriam direito, no caso específico, aos direitos previstos para pessoas resgatadas do trabalho análogo a de escravo?
Um desses direitos é o benefício do seguro-desemprego durante um período de 3 meses após o resgate e a inserção prioritária em políticas sociais. A operação de Belo Monte foi conduzida pela Polícia Civil, a pedido do Conselho Tutelar, alertado por uma jovem que havia conseguido fugir do estabelecimento. Pelo fato do Ministério do Trabalho não ter tido participação na operação, não se aplicou a norma regulamentar que possibilita a inclusão dos resgatados no registro do seguro-desemprego.
Trabalho escravo
Um dos argumentos às vezes alegados para descartar a possibilidade de equiparação entre essa situação e as demais situações de trabalho escravo é de que a prostituição não é uma ocupação legalmente reconhecida.
Um dos argumentos às vezes alegados para descartar a possibilidade de equiparação entre essa situação e as demais situações de trabalho escravo é de que a prostituição não é uma ocupação legalmente reconhecida.
O representante do Ministério do Trabalho, Alexandre Lyra, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) recordou oportunamente que foi feito o mesmo tipo de questionamento em relação aos primeiros resgates de trabalhadores estrangeiros encontrados em situação de trabalho escravo em oficinas de costura de São Paulo, alguns anos atrás. Sob a alegação de que se tratava de imigrantes bolivianos em situação irregular, não teriam direito a ser tratados como trabalhadores comuns, brasileiros. E informou que essa objeção, por contrariar abertamente as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acabou sendo descartada. Hoje virou norma garantir os mesmos direitos aos estrangeiros encontrados em situação de trabalho escravo. Inclusive foi dada orientação formal à Polícia Federal para não deporta-los, mas sim encaminha-los para regularização, mesmo que temporária.
O mesmo raciocínio vale para todas as situações de exploração em situação de trabalho forçado ou análogo a de escravo, sem discriminação da situação legal pessoal da vítima ou da legalidade da atividade na qual se dá a sua exploração. O artigo 149 do Código Penal Brasileiro tipifica a conduta de trabalho análogo a de escravo sem especificar o ramo de atividade envolvido ou a qualidade da vítima.
Artigo 149 do Código Penal Brasileiro
Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. |
Por sinal, na história recente da fiscalização do trabalho escravo, já houve caso em que o Grupo de Fiscalização Móvel libertou pessoas em situação de escravidão na modalidade específica da exploração sexual: por exemplo em Várzea Grande, MT, em dezembro de 2010, quando 24 pessoas foram resgatadas. Segundo a notícia divulgada na época pela agência da Repórter Brasil:
“Mulheres sexualmente exploradas e impedidas de sair de uma boate – a não ser mediante pagamento – foram libertadas em Várzea Grande (MT), município vizinho à capital Cuiabá (MT). Além das 20 jovens do sexo feminino, quatro homens também foram encontrados em situação degradante e submetidos a jornadas exaustivas, itens que caracterizam o trabalho análogo à escravidão (segundo o art. 149 do Código Penal). Mantidas em alojamentos precários e superlotados no interior da casa noturna Star Night, as mulheres eram obrigadas a ficar praticamente 24h à disposição dos donos do estabelecimento, situado na região do “Zero Km”, a pouco mais de um quilômetro do centro de Várzea Grande (MT) e a cerca de um quilômetro do Aeroporto Internacional Marechal Rondon. Sem direito ao descanso semanal remunerado garantido por lei, elas não folgavam nem aos domingos e feriados. Algumas chegaram a assinar um contrato que vedava a própria saída do local de trabalho caso não houvesse a quitação de pagamentos combinados. Segundo Valdiney Arruda, que comanda a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso (SRTE/MT) e acompanhou a ação, as mulheres “viviam em regime total de subordinação [frente aos empregadores]“. “Além da exploração sexual, elas ainda eram obrigadas a fazer shows de striptease como cumprimento da jornada de trabalho”, complementa o superintendente”.
Tráfico de pessoas
O caso recente de Belo Monte não apresenta diferenças substantivas. Mas coloca em evidência uma séria anomalia na política brasileira de combate ao trafico humano: foram estabelecidas políticas, instituições e ferramentas separadas para tratar do combate ao trabalho escravo, de um lado, e tratar do enfrentamento ao tráfico de pessoas, do outro lado, como se essas duas frentes fossem conceitualmente e praticamente separadas de maneira estanca. A atualidade nos confirma que não o são e nos obriga a retomar uma visão integrada e integral do fenômeno da escravidão moderna.
O caso recente de Belo Monte não apresenta diferenças substantivas. Mas coloca em evidência uma séria anomalia na política brasileira de combate ao trafico humano: foram estabelecidas políticas, instituições e ferramentas separadas para tratar do combate ao trabalho escravo, de um lado, e tratar do enfrentamento ao tráfico de pessoas, do outro lado, como se essas duas frentes fossem conceitualmente e praticamente separadas de maneira estanca. A atualidade nos confirma que não o são e nos obriga a retomar uma visão integrada e integral do fenômeno da escravidão moderna.
As características descritas no artigo 149 do código penal para criminalizar o trabalho análogo a de escravo aplicam-se rigorosamente também a situações de exploração sexual. Da mesma maneira é norma incorporada em nosso ordenamento jurídico, a partir da ratificação do Protocolo de Palermo, reconhecer na exploração sexual e no trabalho forçado algumas das possíveis finalidades do tráfico de pessoas, cujo enfrentamento é objeto do Protocolo. De fato o texto de Palermo define o tráfico de Pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”
Por sinal, a única referência ao tráfico de pessoas em nosso código penal (nos artigos 231 e 231-A, revisados pela lei nº. 11.106 de 2005), ficou obsoleta, pois manteve no texto legal uma definição do tráfico restrita à promoção ou facilitação da prostituição: “promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (Art. 231), e “promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição” (Art. 231-A).
Nos vários ambientes, o crime tem esse nome: escravizar. Está na hora de reunir problemáticas que nossa história recente, inoportunamente, apartou.
Xavier Plassat é coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo e integrante da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)
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