Pesquisa com 233 vítimas de abuso sexual mostra que quase a metade delas também sofreu com a traição institucional. Elas sentem-se desamparadas ou desprotegidas pelo local onde o crime foi cometido
Bruna Sensêve - Correio Braziliense
Publicação: 13/04/2013 04:00
Os efeitos pós-traumáticos de um abuso sexual podem ser agravados quando, além da violência, as vítimas sofrem com a chamada traição institucional. O termo, criado por Carly Parnitzke e Jennifer Freyd, do Departamento de Psicologia da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, descreve a sensação de rompimento do pacto de confiança firmado entre a pessoa agredida e a instituição onde o abuso ocorreu. A última teria falhado na prevenção da agressão e em não responder com assistência e amparo, quebrando os laços de confiabilidade.
Pesquisa conduzida pela dupla de psicólogas analisou o histórico de 345 universitárias americanas. Quase metade delas afirmou ter passado por pelo menos uma experiência sexual indesejada forçada durante a vida. Outras 21% relataram não ter sofrido uma coerção evidente, mas que a insistência ou a excitação dos parceiros envolvidos as levou a se sentirem incapazes de impedir a relação. Ambos os grupos somam 233 vítimas. Em média, as mulheres relataram três experiências sexuais não desejadas. Diferentemente das experiências, a traição institucional foi identificada como um fator que pode causar um prejuízo ainda maior às sobreviventes do abuso.
Originalmente, o estudo incluiu 514 estudantes do sexo masculino e feminino que não sabiam do tema do projeto — o sigilo foi mantido para evitar uma autosseleção dos participantes. Depois, foram consideradas somente as avaliações das 345 voluntárias, com idade média de 19 anos. Parnitzke e Freyd utilizaram a Escala de Experiências Sexuais (SES, em inglês), variando entre 0 e 12 pontos, sendo o escore mais alto destinado às experiências sexuais mais indesejadas. A escala foi dividida ainda em três tipos de experiências coercivas: verbal, física ou em que o álcool ou outras drogas foram usados para facilitar a experiência sexual indesejada.
Após esses relatos, uma segunda parte da pesquisa avaliou a ocorrência e o grau da traição institucional por meio de um questionário criado por Parnitzke e Freyd. Cada entrevistada teve que fazer uma associação entre as instituições do qual fazia ou teria feito parte e o papel assumido por elas nas experiências relatadas anteriormente. As pesquisadoras avaliaram também a presença de dificuldades relacionadas ao pós-trauma, como ansiedade, depressão, dissociação, problemas sexuais e distúrbios do sono. Das 233 participantes que relataram qualquer experiência sexual indesejada, 46% também disseram ter vivido pelo menos uma forma de traição institucional.
“Cegueira”
As formas de traição institucional relatadas mais frequentemente envolveram organizações que criaram ambientes em que as experiências sexuais indesejadas pareciam comuns (21%) e em que o abuso parecia mais provável de acontecer (17%). Embora a traição institucional não seja o único preditor dos sintomas, interações significativas entre o abuso sexual e a traição institucional foram observadas por quatro subescalas de diagnóstico. Em todas elas, as mulheres que sofreram traição institucional tiveram os sintomas pós-traumáticos mais graves.
Em entrevista ao Correio, Carly Parnitzke, uma das autoras do estudo, detalhou que esse tipo de traição é mais comumente relatado em uma cultura institucional em que o abuso sexual parece ser esperado. Essa posição seria seguida por uma falha das instituições em tomar medidas proativas para prevenir esse tipo de violência. “Viver ou trabalhar em um ambiente como sobrevivente de um trauma desses parece trazer os efeitos aditivos e exacerbados de lembranças, e a invalidação da experiência negativa. Vemos que esse tipo de traição pode ter implicações profundas para o funcionamento psicológico”, avalia.
Segundo Parnitzke, uma instituição confiável pode desempenhar vários papéis para os indivíduos após um trauma sexual, tornando-se fonte de cura e de apoio se os relatórios de investigação são levados a sério e as vítimas de traumas sexuais, protegidas e cuidadas. “As instituições podem parecer infalíveis e, muitas vezes, o que os sobreviventes querem é uma admissão de irregularidades e de evidências de que mais pessoas não sofreram como eles.”
Parnitzke conta que essa dificuldade é muitas vezes descrita como “cegueira para traição”, na qual a vítima e outros integrantes de instituições têm um envolvimento tão grande com o local em que houve a agressão que chegam a ofuscar o fato ou até mesmo cogitar a possibilidade de ela não ter acontecido. Em grau extremos, essa cegueira pode levar a vítima a apagar da memória os abusos sofridos e a adotar um comportamento de ignorar indícios de infidelidade. “Embora seja uma situação difícil de se adaptar e permanecer inconsciente, já que a atitude faz com que cresça a probabilidade de que elas ocorram de novo, a necessidade de manter uma relação necessária é maior”, explicam as pesquisadoras. Esse envolvimento perigoso com as instituições é relatado no recém-lançado livro Blind to betrayal (Cego para a traição, em tradução livre), escrito por Jennifer Freyd, uma das autoras da pesquisa, e Pamela Birrell (Veja o Quatro perguntas para).
Palavra de especialista
Papel definitivo na
solução dos traumas
“As evidências clínicas apontam para esses resultados encontrados pelas autoras do estudo. O resultado de um trauma não é necessariamente o mesmo para todas as pessoas. Experiências traumáticas deixam um dano que pode ser solucionado em algum tempo, e a pessoa vai elaborar isso sozinha. Pode virar um estresse pós-traumático ou evoluir para outras formas. Isso depende das características do trauma, das características percebidas pela pessoa e das características individuais da vítima. Então, será que ela vai superar? Pode ser que sim. Mas o que o estudo mostra é que o papel da instituição pode ser definitivo ou decisivo na forma de essa pessoa elaborar essa experiência. Isso ainda depende de outros estudos e só dados de pesquisa podem mostrar o que realmente acontece.”
Suely Sales Guimarães, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
Quatro perguntas para
Pamela Birrell,
coautora do livro Blind to betrayal
(Cego para a traição, em tradução livre)
Lidar com a traição é o caminho certo a seguir, mesmo que pareça mais difícil? Como é possível fazer isso?
Confrontar a traição é ser corajoso o suficiente para afirmar a própria verdade. Isso pode ser doloroso no início, porque arriscamos relacionamentos que parecem importantes, mas são, na realidade, baseados em mentiras. Relacionamentos podem acabar, deixando-nos mais tristes, mas também mais fortes e sábios. Ou, às vezes, os relacionamentos podem crescer mais fortes pelo próprio confronto com a traição. A principal mudança no comportamento é sermos verdadeiramente honestos com nós mesmos e com a outra pessoa (ou a instituição).
Essa mudança deve vir do indivíduo,
da instituição ou de ambos?
O indivíduo deve ser forte e honesto. A instituição deve estar disposta a ouvir e fazer alterações. Ambos devem mudar em direção ao respeito mútuo.
Como a traição pode afetar a percepção
da realidade?
Ela depende da relação com o(s) autor(es). Se é uma relação necessária, como as crianças e os pais, ou as mulheres totalmente dependentes do marido, ou os funcionários desesperados para manter o emprego, a percepção da realidade pode ser totalmente distorcida. Haverá uma cegueira completa da traição. A vítima terá toda a confusão e dor para si, e poderá começar a pensar que está louca, e não a situação.
Se a violência for de longa duração, poder
resultar em problemas de saúde física
e mental. Qual é o impacto disso na sociedade?
Há sempre tempo de ver e enfrentar a traição das instituições. É difícil porque elas muitas vezes escondem a traição em atos supostamente benevolentes, mas falar a verdade ao poder mantém as instituições responsáveis e cria uma sociedade mais justa.





