Por Jarid Arraes para as Blogueiras Negras
A sexualidade é um campo diverso e subjetivo e, por isso, nada a seu respeito é unânime. A construção sexual de cada pessoa é única, não podendo jamais ser caracterizada de forma universal. No entanto, a reação da sociedade com relação à sexualidade feminina costuma ser bastante semelhante para diversas mulheres no mundo. Isso se dá em grande parte por conta das influências do patriarcado. Esse sistema de organização social subjuga todas as mulheres, mas o quadro é especificamente complicado para as mulheres negras.
Todas as mulheres são objetificadas culturalmente e usurpadas de qualquer autonomia. Para elas, há um processo compulsório a ser vivido para que a soberania sobre a própria sexualidade seja retomada das mãos do patriarcado. É necessário um esforço extremamente desgastante para conseguir sair da posição de objeto, sem direito a voz, e obter competência sobre a própria vida sexual.
O MACHISMO CONTRA A MULHER NEGRA
A forma como a manutenção sobre a sexualidade feminina é exercida varia de acordo com as outras interseccionalidades da mulher em questão. Uma mulher negra sofre os efeitos do machismo e do patriarcado de forma diferente de uma mulher branca. Um bom exemplo para se refletir está no caso da Quvenzhane, uma garota negra de 9 anos que foi chamada de “cunt” (uma palavra derrogatória para se referir às mulheres, mais ou menos equivalente a “buceta” em português) em um site de paródias de notícias. A reação das pessoas foi de relevar a ocorrência por se tratar “somente de uma piada”. Mas quando uma mulher branca diz a mesma palavra na televisão, as pessoas se chocam. Essa diferença na percepção das situações não é livre de influências socioculturais e, por isso, mesmo que inconscientemente, muitas pessoas conseguem relevar o caso da Quvenzhane – apesar de ser uma criança e vítima de violência de cunho sexual – somente pelo fato dela ser negra.
Nos dois casos, as garotas são dominadas pelo machismo e tratadas como seres sem autonomia. O controle sobre a menina branca é feito de forma pretensiosamente protecionista, enquanto a menina negra é visivelmente hostilizada. Isso nos leva a refletir sobre a própria idéia de resguardo sexual na infância: uma menina branca deve ser resguardada de qualquer expressão de sexualidade, mas para uma menina negra é considerado aceitável a exposição de sexo ou violência, levando-a muitas vezes a situações de abuso sexual.
A COR DO PECADO
A mulher negra é cercada de dicotomias quando o assunto é seu corpo: por um lado, há um misto de invisibilidade e indesejabilidade quando o corpo feminino é negro, pois no mercado erótico, nas revistas masculinas e na representação midiática prevalecem as mulheres brancas e loiras como mulheres desejáveis. Mamilos, axilas e genitais negros, por exemplo, são considerados asquerosos, havendo uma infinidade de produtos com o fim de clarear essas partes. As qualidades sexualmente desejáveis são sempre aquelas associadas ao corpo da mulher branca e mesmo as características consideradas ruins, como cabelo crespo ou nariz largo, são muito mais toleradas em uma mulher de pele clara.
Nas raras ocasiões em que a sociedade expressa algum desejo por mulheres negras, é quase sempre pela idéia de que a mulher negra é um “sabor diferente” e “mais apimentado” de mulher. O corpo feminino negro é hipersexualizado e considerado exótico e pecaminoso. Quem nunca ouviu falar que a mulher negra tem a “cor do pecado”? Essa é a brecha que sobrou para que o patriarcado continue a impôr o racismo às mulheres negras: a dicotomia do gostoso, exótico e diferente, mas que ao mesmo tempo é proibido, impensável, pecaminoso e não serve para o matrimônio ou monogamia. Nossa sociedade já considera geralmente que o racismo é algo ruim; o problema, em grande parte, está em identificar o racismo dentro de atitudes e políticas do dia a dia. E segregar sexualmente as mulheres negras também é uma forma de racismo, mas é socialmente aceitável em pleno século XXI.
OBJETIFICAÇÃO SEXUAL PRECOCE E O ESTIGMA DA PROMISCUIDADE
Desde cedo, a garota negra é simbolizada sexualmente. Afinal, ela é considerada mais provocativa do que a garota branca: tem a “cor do pecado” e não é “a garota certa para relacionamentos”. As meninas e adolescentes negras são vistas sob um olhar objetificador, são as maiores vítimas da exploração sexual e, uma vez que a grande maioria provém das camadas mais pobres – vestígios racistas inegáveis de uma sociedade escravocata -, são inseridas muito cedo no mercado da prostituição forçada, sendo vendidas e trocadas por valores desprezíveis.
Por esses fatores, a garota negra cresce com o estigma de ser promíscua. E a verdade é que a sociedade não reflete sobre a objetificação e exploração que impõe às garotas negras, ela apenas reforça seus conceitos racistas de exotificação e condena a mulher negra a uma vida em que sua sexualidade será sempre sua algoz. É essa garota negra que será usada como bode expiatório para opiniões machistas sobre gravidez na adolesência e também é essa mulher negra que será eternamente a mãe solteira, sem marido e sem moral.
DIFERENÇAS CULTURAIS
Seria incoerente analisar a sexualidade da mulher negra com a mesma ótica que observamos a mulher branca. Há fenômenos socioculturais específicos de uma população negra, especialmente dentro de um contexto de segregação e classe social, como pode ser visto no caso do funk, considerado “música de pobre” pela população rica e branca. Essas especificidades podem funcionar ao mesmo tempo como opressoras e empoderadoras para mulheres negras.
Para tomar o poder sobre sua própria sexualidade, a mulher negra pode e deve agir de maneiras diversas. Sua sexualidade não se encaixa num molde e nem é assunto para apenas um texto. As nuances são muita e a complexidade é grande. É preciso expôr e falar mais sobre o assunto, pois o empoderamento da mulher negra sobre seu próprio corpo e sexualidade encontra um obstáculo monstruoso: o racismo. Ser dona de seu desejo sexual não é uma tarefa fácil. Somente quando o racismo for derrubado, haverá espaço para que a mulher negra consiga ser sexualmente livre.
É importante lembrar que quando o assunto é sexualidade feminina, nenhuma mulher tem sua autonomia concedida pelo patriarcado. A necessidade não é de negar a objetificação, exploração e violência cometidas contra a mulher branca, mas saber que há contextos diversos. A mulher branca, a negra, a indígena, a indiana, a japonesa, a sul-africana etc., cada uma delas sofre exploração sexual, objetificação, estupro e negação de autonomia, mas a forma como isso acontece sofre nuances devido não apenas à etnia, como também à religião e classe socioeconômica. A forma mais eficiente para combater esse tipo de violência é compreendendo as necessidades mais importantes de cada contexto e lidando diretamente com as especifidades de cada um. É preciso conhecer mais e promover discussões mais abrangentes, assim como ações e políticas públicas que atinjam o alvo.
Jarid Arraes é educadora sexual, especialista em sex toys e escreve no Mulher Dialética.