Após tortura com choque e abuso sexual, vítima da ditadura resume período: "As marcas não saem"


Relembrar período é essencial para mostrar aos jovens o valor da democracia, afirma historiador
Do R7*
Dida Sampaio/15.07.2009/Estadão ConteúdoCecília Coimbra foi presa em 1970
A ditadura teve início no Brasil no dia 1º de abril de 1964, com a queda do então presidente João Goulart, e perdurou até 1985, quando ocorreu a eleição do primeiro presidente civil — Tancredo Neves — depois de 21 anos.

Durante o período, mais precisamente em 1970, o Brasil era governado por Emílio Garrastazu Médici e, naquele ano, a então estudante de psicologia e militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) Cecília Coimbra foi presa e torturada.
Presa em 28 de agosto de 1970, Cecília sofreu torturas como choques elétricos e abusos sexuais. Ela relembra o medo que sentia quando era encapuzada e levada ao “interrogatório”. Isso sem contar nas inúmeras vezes que viu o marido ser torturado. Apesar de tantas memórias ruins, ela garante que “não fala na posição de vítima, mas sim de sobrevivente”.
— Nenhum de nós [militantes] é coitadinho. Mas essas marcas [da tortura durante a ditadura] não saem.
Segundo a ex-militante, o tempo em que ficou presa foi “o mais terrível período [da ditadura militar], em que mais se torturou e o auge do terrorismo”. Mesmo afirmando que é “difícil” falar sobre a tortura, ela diz que é preciso contar o que se passou para “que se possa continuar na luta”.
Hoje, Cecília é a atual vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, fundado por ela para "lutar contra aquele regime de terror".
Para o sociólogo e professor da Unicamp (Universidade de Campinas), Marcelo Ridenti, é importante lembrar o período da ditadura militar para que os brasileiros valorizem a democracia.
— Não podemos mais retroceder. É importante lembrar o desrespeito aos direitos humanos e a censura que, naturalmente, são coisas que nós esperamos que fiquem no passado.
Mesmo com a Comissão Nacional da Verdade, que investiga crimes contra os direitos humanos cometidos pelo governo durante a ditadura, Cecília considera que “a história continua sendo ignorada”.
— Ninguém foi responsabilizado. Essas pessoas continuam nas sombras.
Ridenti relembra que o período foi “paradoxal”, pois muitas pessoas consideravam a época favorável porque conseguiam ter acesso a bens supérfluos para a época — como televisão e rádio, por exemplo.
— Aconteceu uma modernização conservadora, que está associada à manutenção de desigualdades sociais que ajudou a desenvolver o País, mas não para o benefício de todos.
Vítima da ira dos militares, a ex-militante diz que forças políticas que fazem parte do cenário brasileiro “foram coniventes” com a ditadura e, para ela, a Comissão da Verdade “é uma brincadeira” por ter apenas reafirmado “o que os movimentos de direitos humanos e os familiares [das vítimas] falavam”.
— A censura da ditadura continua a ser mantida. Os testemunhos são mantidos em total sigilo. O relatório final não será público. É fundamental que esse relatório seja público. Não está se passando a limpo a história.
O professor da Unicamp afirma que a ditadura foi “herdeira de uma realidade autoritária do Brasil”, que é contrária aos “diretos de igualdade”. Isso fez com que muitos jovens da época, como Cecília, se revoltassem contra o regime.
Essa necessidade de lutar contra os padrões conservadores era algo que acontecia em todo o mundo e, no Brasil, não foi diferente, explica o historiador da Unicamp.
— As pessoas que tinham o mínimo de politização se sentiam perseguidas. Havia uma insatisfação com a ordem social. Havia muita rebeldia no Brasil e ela tinha diversas motivações como a contracultura, o liberalismo e o socialismo.
Comissão da Verdade e a mídia
Cecília condena que apenas as histórias mais famosas da ditadura sejam divulgadas e investigadas pela Comissão da Verdade, como a do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog.
— Eu fui testemunha de uma tortura de um companheiro, mas eu não fui chamada pela comissão. [Porque ele era] uma pessoa pouco conhecida.
De acordo com ela, o número de mortos e desaparecidos durante a ditadura “é muito maior”, mas que “as famílias ainda tem muito medo” de denunciar.
Cecília diz que o período provocou “efeitos” na sociedade brasileira e que os dispositivos usados na ditadura “são os mesmos usados hoje contra a pobreza e os movimentos sociais”.
Militares
Poucos dias antes de completar 49 anos do golpe, três associações de militares das Forças Armadas divulgaram uma carta aberta, com data de 31 de março, para comemorar a data.
O Clube Militar, Clube Naval e Clube da Aeronáutica declaram que a "intervenção" feita na época foi em "benefício da Nação Brasileira" e que "há evidências em todos os setores: econômico, comunicações, transportes, social, político".
Eles também afirmam que os militantes eram "minorias envolvidas na liderança da baderna" que "iniciaram ações de terrorismo, com atentados à vida de inocentes" e disparam contra a Comissão da Verdade, dizendo que seus integrantes são "democratas arrivistas, arautos da mentira".
* Colaborou Giorgia Cavicchioli, estagiária do R7.

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