O lar é o lugar onde a criança deveria se sentir segura e protegida. Mas, nem sempre, é assim. Isso porque o abuso sexual, geralmente, é praticado dentro de casa, e, pior, por parentes próximos e queridos.
Lar, doce lar. Um lugar onde a gente deveria se sentir relaxado, seguro e protegido. Mas, para muitas crianças e adolescentes, é palco de um grande pesadelo: o abuso sexual. Pesquisas e estudos sobre o assunto mostram que não importa a classe social, a raça ou o nível de escolaridade. É dentro de casa que acontece grande parte da violência sexual, geralmente provocada por pessoas do sexo masculino, como pai, padrasto, tio, parentes ou amigos da família, tendo como alvo preferencial as meninas. Desde leves carícias pelo corpo até o ato sexual em si, há quem se aproveite da ingenuidade dos pequenos para realizar fantasias sexuais, sem se importar com as conseqüências que isso pode trazer a eles. E o pior: como o abuso ocorre em segredo, nem sempre se descobre o que está havendo. Como pouca gente tem coragem de denunciar, alguns abusadores continuam agindo, certos de sua impunidade.
Quando se pensa em um abusador, logo vem à mente uma pessoa diferente, de mau aspecto e com jeito de maníaco sexual, não é? Só que não é nada disso. A realidade mostra que o abusador geralmente é uma pessoa comum, agradável, simpática e discreta, com pinta de bom pai de família. E por falar em família, é ali que acontecem a maioria dos abusos, cometidos por pessoas queridas pela vítima. E, por ser uma situação extremamente delicada que, na maioria das vezes, envolve pessoas que possuem grandes laços afetivos, ainda é muito difícil ter coragem de denunciar um abuso sexual. De acordo com a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência -Abrapia, somente cerca de 10% a 20% dos casos de abuso contra crianças e adolescentes são registrados.
O modo de ação do abusador, muitas vezes, passa despercebido pelos parentes da vítima. Isso acontece porque nem sempre a criança é violentada, apresentando marcas de relações sexuais, ou espancada. Agressão física acontece, mas a maioria dos abusadores prefere agir na surdina, muito sutilmente. Eles podem apenas alisar ou beijar a criança, passar as mãos por seu corpo e pelos órgãos sexuais, como se fosse apenas carinho, ou simplesmente nem tocar nelas. Alguns preferem mostrar filmes de vídeo e revistas pornográficas para a criança, para “ensinar” como se faz sexo, enquanto outros preferem observá-la enquanto toma banho ou troca de roupa. E ainda existe uma outra artimanha: para convencê-la a ser tocada ou a participar de uma relação sexual, muitos apelam para a sedução por meio de elogios, dinheiro ou presentinhos.
Características
Estudos mostram que nem sempre os abusadores são pedófilos de plantão. “Existe o abusador situacional, que é aquele que comete o ato impulsivamente, motivado por algum problema psicológico, como fragilidade, auto-estima baixa e sentimento de menos-valia. Esses abusam esporadicamente, apenas diante de uma situação como essa. Já o abusador fixado, ou pedófilo, tem as crianças como objeto de desejo sexual. Usa-as para obter satisfação, não só sexual, mas de poder, de controle. É uma pessoa que tem imaturidade no desenvolvimento sexual. A pedofilia é uma doença, a pessoa não tem controle sobre seu desejo e não consegue evitar o abuso”, explica a psicóloga e terapeuta de família Vânia Izzo de Abreu, da Abrapia.
Para a psicóloga Mônica Freitas, da Aliança de Psicologia Hospitalar, do Rio de Janeiro, quem abusa sexualmente de alguém tem como característica principal o desejo de transgressão. “São indivíduos que não possuem limites e nenhum significado de moral e respeito. Abusadores são doentes que necessitam de tratamento”, define ela.
Motivos
As causas do abuso variam muito. Segundo pesquisas, o molestador costuma considerar o abuso uma coisa normal, pois pensa que, com ele, está dando à criança a oportunidade de experimentar o sexo. Para conseguirem o que querem, precisam também convencer a criança de alguma maneira. Uma delas é dizendo que a “brincadeirinha” ou a relação sexual são um “segredo” entre eles, que não deve ser revelado a ninguém. E partir, em seguida, para a chantagem, com ameaças. Grande parte das vezes, a criança ouve coisas como “Se a mamãe souber do nosso segredo, ela vai ficar muito brava e abandonar você” ou “se você contar para alguém o que nós fazemos, vai apanhar bastante”. Confusa e sem saber direito o que está acontecendo, a criança aceita. Tanto por medo das conseqüências quanto por achar que não será mais amada pelo abusador – que, como foi dito, geralmente é um parente muito querido.
Crianças confusas
Segundo a psicóloga Vânia Abreu, apesar do trauma de ter sido abusada, cada criança reage ao fato de maneira diversa. “Cada caso é um caso. Ela pode ter um comportamento sexualizado precoce, masturbação compulsiva, não se sentir querida ou amada, achar que não pertence ao grupo infantil e isolar-se dos amiguinhos, sentir-se suja ou não apropriada. Pode, inclusive, sentir prazer e até vontade de continuar o abuso, para sentir mais proximidade, carinho ou atenção do abusador. São vários os lados da questão: há crianças que gostam, outras que sofrem. Mas nenhuma delas entende realmente o que está acontecendo”, ressalta ela. Algumas crianças, inclusive, continuam gostando do abusador, pois têm uma relação de parentesco com ele. Mas outras desenvolvem uma fobia muito grande de se aproximar dele e começam a apresentar reações físicas, como dor no corpo ou dor de barriga. Podem até pensar em suicídio, pois o trauma é muito forte.
Até mesmo a maneira como a família reage diante da descoberta do abuso influi em seu comportamento. As marcas psicológicas perduram pelo resto da vida. “As conseqüências emocionais para a criança ou adolescente são bastante graves, tornando-as deprimidas, inseguras, com problemas sexuais ou de relacionamentos íntimos”, afirma a psicóloga Mônica Freitas.
Descoberta
Como a maior parte dos casos não apresenta marcas nos órgãos sexuais, geralmente os exames de corpo de delito não detectam o abuso. Então, a melhor forma de descobrir como ele aconteceu é entrevistar todas as pessoas envolvidas: a criança, a família e o próprio abusador. A própria Abrapia tem um programa, o Sentinela, que avalia a criança/adolescente e a família, com o auxílio de profissionais capacitados. Segundo Vânia, não é nada fácil convencer a criança a falar. “É um trabalho que precisa ser feito com cuidado. É preciso ganhar a confiança da vítima para conseguir que ela conte o que ocorreu. Muitas preferem contar o abuso através de desenhos ou da representação do ato com bonecos que possuem a genitália e os orifícios aparentes”, diz. Entretanto, há casos de abuso que nunca vêm à tona. Algumas vítimas guardam segredo por muitos anos, outras pelo resto da vida. Com isso, levam para a vida adulta problemas como frigidez, dificuldades de relacionamento afetivo ou necessidade de se aproximar sexualmente das pessoas para obter algum tipo de atenção.
Dentro de casa
Em família, o caso fica bem mais complicado. Há mães que sabem o que está acontecendo, mas não o que fazer diante disso. Segundo Vânia, tem as que acreditam na criança e procuram ajuda, inclusive se separando do abusador. E tem as que não conseguem acreditar de jeito nenhum no filho. “Elas acham que aquilo não é verdadeiro, pois a situação bate de frente com as suas questões de sexualidade”, comenta a psicóloga. Já as que nunca desconfiaram de nada, ao descobrir o abuso, se sentem culpadas por não terem protegido a criança.
Uma situação de abuso mexe com toda a dinâmica familiar, provocando reações bem diferentes em cada pessoa envolvida. Além disso, a família pode ficar dividida e em dúvida quanto à veracidade da ocorrência do abuso. Muitos parentes chegam até a culpar a criança pelo ocorrido, dizendo que foram elas que provocaram a situação. “Se a criança relata isso para alguém, a pessoa tem de acreditar nela e encaminhá-la ao Conselho Tutelar. Cada criança tem uma forma própria de revelar o abuso, mas é necessário acreditar nela. E, se for uma situação que lesionou órgãos sexuais, o melhor é levá-la a um hospital”, recomenda Vânia Abreu.
Como agir
Mas o que fazer quando se descobre um caso de abuso sexual dentro da família? O primeiro passo é procurar pessoas especializadas no assunto – como psicólogos, psiquiatras e instituições de apoio à criança e ao adolescente. São pessoas capacitadas para lidar com o problema e que podem orientar a família a gerenciar melhor a situação. Outro passo importante é notificar o Conselho Tutelar da localidade, um hospital ou um posto de saúde, para buscar assistência à criança. “É preciso denunciar, pois o abuso sexual é crime. A criança ou o adolescente não é responsável pela violência que sofreu. Existe toda uma parte jurídica envolvida, devido à violação da criança e à responsabilidade penal do abusador. A família deve protegê-la e tirá-la das mãos de quem a abusou. Quanto mais cedo isso for feito, melhor”, opina Vânia Izzo. A psicóloga Mônica Freitas concorda. “É importante que se afaste a criança do local para sua própria proteção e buscar, o mais rápido possível, a ajuda de um profissional especializado, para que este faça o encaminhamento da situação da melhor forma possível”, recomenda.
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