Desculpem a demora. Saí para fazer uma entrevista, e demorou mais do que eu pretendia. A conversa rendeu. Sigamos. Recebo um comentário da leitora Daniele — evito o sobrenome porque não quero que pessoas sejam alvos de comentários em redes sociais —, que reproduzo abaixo. Ela responde às críticas que fiz à professora Luciana Boiteux, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao defender a descriminação das drogas num seminário em que só falaram pessoas com essa opinião (os debatedores foram lá para se aplaudir mutuamente), afirmou a preclara: “O que tá errado é a ideia de que a lei tem alguma condição de alterar a realidade. As pessoas fazem o uso de substância com ou sem a lei proibindo”. Como sou uma pessoa lógica, pensei nas consequências práticas da afirmação segundo a qual “a lei não tem nenhuma condição de alterar a realidade”. Ora, fica declarada, segundo a especialista, a inutilidade das leis. Eu respeito o que as pessoas dizem. Não tento nem melhorar nem piorar o conteúdo. Atenho-me ao sentido das palavras. Daniele, então, me escreve o seguinte (em vermelho).
Prezado Reinaldo, não fui aluna da Professora Boiteux, mas me formei pela UFRJ e tive o imenso prazer de ter aprendido Direito Penal com o Professor Nilo Batista, que segue uma linha similar à da Prof. Boiteux. Apesar de não ser essa a minha área de atuação, posso lhe dizer que o senhor está absolutamente equivocado. E, para justificar essa minha afirmativa, convido-o a comparecer a algumas aulas do Professor Nilo Batista, que mudou completamente a minha visão sobre essa questão, que era bastante parecida com a sua. Em que pese discordar de algumas das lições do Professor Nilo Batista, que acho por vezes bastante radical, um ponto é verdade: nos moldes em que é formulado e aplicado no Brasil, o Direito Penal não funciona, especialmente diante de condutas tipificadas como crime. O senhor já parou para pensar que o tráfico, um dos maiores problemas da sociedade brasileira atualmente, responsável pelos crimes mais bárbaros de que se tem notícia, existe apenas porque o comércio de drogas é proibido? De outro lado, já percebeu que, apesar da forte atuação das polícias, as tragédias familiares e os crimes praticados por usuários de drogas aumentam vertiginosamente?
O problema está na falta de repressão ou na falta de um sistema de saúde inteligente e abrangente, que trate o vício do usuário?
Discutir pensamentos diferentes da maioria da população, senhor Reinaldo Azevedo, não é ofender essa maioria. Não é autoritarismo. Pensar diferente e estimular pensamentos diferentes é crucial à democracia e à evolução da sociedade.
P.S.: não sou “de esquerda”, como o senhor parece achar de todos que defendem esse pensamento. Pelo contrário, a esquerda que vemos hoje no Brasil e na América Latina me parece ainda mais burra do que o pensamento de esquerda original. Mas, nem por isso, fecho os olhos ao óbvio. E, me perdoe, mas as considerações aqui expostas pelo senhor me parecem obviamente desprovidas de razão.
O problema está na falta de repressão ou na falta de um sistema de saúde inteligente e abrangente, que trate o vício do usuário?
Discutir pensamentos diferentes da maioria da população, senhor Reinaldo Azevedo, não é ofender essa maioria. Não é autoritarismo. Pensar diferente e estimular pensamentos diferentes é crucial à democracia e à evolução da sociedade.
P.S.: não sou “de esquerda”, como o senhor parece achar de todos que defendem esse pensamento. Pelo contrário, a esquerda que vemos hoje no Brasil e na América Latina me parece ainda mais burra do que o pensamento de esquerda original. Mas, nem por isso, fecho os olhos ao óbvio. E, me perdoe, mas as considerações aqui expostas pelo senhor me parecem obviamente desprovidas de razão.
Voltei
Cara Daniele, é curioso o modo como você argumenta. Fiquei fascinado com o “obviamente”, o que sugere que você demonstrou alguma tese. E, obviamente, não há demonstração nenhuma, não é mesmo? Vou caminhando de trás para a frente na sua mensagem: não, eu não acho que a esquerda tem o monopólio do erro. Não mesmo! Certa direita que se quer ultraliberal pode ser ainda mais tola. A razão é simples: a esquerda pensa o que pensa porque, do seu modo amalucado, quer “mudar o sistema”. Qualquer instrumento é válido para isso — incluindo as drogas. A direita, em tese ao menos, quer é melhorar o que está aí. Não seria com as drogas. Assim, a esquerda pode defender a estupidez, mas é por cálculo. Quando a direita defende a mesma estupidez, é por burrice. Logo, do seu ponto de vista, a esquerda está certa em defender a descriminação das drogas. Quem pisa no tomate é a direita que faz o mesmo. Adiante, ainda de trás para a frente.
Cara Daniele, é curioso o modo como você argumenta. Fiquei fascinado com o “obviamente”, o que sugere que você demonstrou alguma tese. E, obviamente, não há demonstração nenhuma, não é mesmo? Vou caminhando de trás para a frente na sua mensagem: não, eu não acho que a esquerda tem o monopólio do erro. Não mesmo! Certa direita que se quer ultraliberal pode ser ainda mais tola. A razão é simples: a esquerda pensa o que pensa porque, do seu modo amalucado, quer “mudar o sistema”. Qualquer instrumento é válido para isso — incluindo as drogas. A direita, em tese ao menos, quer é melhorar o que está aí. Não seria com as drogas. Assim, a esquerda pode defender a estupidez, mas é por cálculo. Quando a direita defende a mesma estupidez, é por burrice. Logo, do seu ponto de vista, a esquerda está certa em defender a descriminação das drogas. Quem pisa no tomate é a direita que faz o mesmo. Adiante, ainda de trás para a frente.
Nilo Batista? Sei… É aquele que foi vice de Leonel Brizola e que teve a chance de governar o Rio de Janeiro entre 1994 e 1995, não é isso? Pois é… Ele teve a chance de testar as suas ideias. Na prática, mostraram-se um desastre. E isso é apenas história. Os criminosos botaram pra quebrar em sua gestão.
Diz você que que “o tráfico, um dos maiores problemas da sociedade brasileira atualmente, responsável pelos crimes mais bárbaros de que se tem notícia, existe apenas porque o comércio de drogas é proibido”. Ah, eu sei disso. Os criminosos, minha cara, não sei se Nilo Batista teve tempo de lhe ensinar isso, só existem porque a sociedade decide que algumas coisas são crimes. Numa sociedade em que tudo fosse permitido, não haveria nem pecado nem perdão, não é mesmo? Não estou comparando os crimes, mas apenas empregando o mesmo método de argumentação: se a pedofilia for descriminada, acabam-se os pedófilos criminosos. Se o homicídio for descriminado, acabam-se os homicidas criminosos; se o estupro for discriminado, acabam-se os estupradores criminosos..
Nilo Batista pode ter sido, e foi, um péssimo governador, mas certamente é um bom professor. Deve ter ensinado que leis são feitas com base em certos consensos sociais também, ou têm de ser impostas pelas armas, pela força militar. A sociedade brasileira não quer a descriminação das drogas, não é mesmo? Manifesta-se reiteradamente a respeito. Não, eu não acho que debater a questão seja sinônimo de desrespeito a essa sociedade. Quando, no entanto, dinheiro público é empregado num suposto debate que não passa de um “happening” em favor das drogas, nesse caso, está caracterizado, sim, o desrespeito.
Mas vamos seguir. Não! Não é verdade que os crimes bárbaros estão aí porque o comércio de drogas é proibido. Não sei se você sabe, mas o comércio de drogas é proibido no mundo inteiro, inclusive em Portugal, à diferença do que fazem crer os liberacionistas. Quem está disposto a delinquir, se não tiver as drogas, optará por outra coisa qualquer que lhe garanta o acesso àquilo que deseja por intermédio da violência, não do esforço. Se as padarias começarem a vender crack, você acha que a violência vai diminuir? Quando o sujeito opta pelo narcotráfico, mesmo sendo uma atividade de risco, e não por ser escriturário, mecânico ou vendedor, você acha que ele o faz por quê? Só porque o narcotráfico é ilegal? Eu me arriscaria a dizer que é porque a atividade rende mais dinheiro e poder do que um trabalho regular. Sim, sem dúvida: se todas as drogas forem discriminadas, talvez valha menos a pena lidar com esse ramo, e os que quiserem mais dinheiro e mais poder do que lhe ofereceria a vida legal vão procurar a… ilegalidade. É uma questão de lógica elementar.
Você erra também em muitos outros aspectos. São Paulo nunca foi condescendente com as drogas. Nos últimos 12 anos, a polícia, com todas as dificuldades que sempre há nessa área e com todos erros, inevitáveis, resolveu enfrentar a questão. Os homicídios no estado caíram mais de 70%. Se o Brasil tivesse a mesma taxa de homicídios de São Paulo, seriam poupadas quase 30 mil vidas por ano — no Rio, por exemplo, morreria a metade.
Quanto a essa histórica, minha cara, de “já pensei como você, mas hoje mudei…”, dizer o quê? Com isso, você sugere que já passou pelo estágio em que estou e avançou. Parte, pois, do pressuposto de que as ideias seguem uma linha evolutiva e de que você já é menos macaco do que eu. Isso é uma besteira! No mundo das ideias, as coisas não funcionam assim. Esse mecanismo de pensamento é uma tentativa de desqualificar a divergência como expressão do atraso, não da diferença.
Finalmente, pergunto: se as drogas forem descriminadas, por que não haveria mais, ou se reduziram, as tragédias familiares? Os viciados em crack deixariam de ser agentes de destruição do próprio núcleo familiar, como são hoje? Os viciados em cocaína deixariam de arruinar a própria vida e, com frequência, a de familiares? Os adolescentes, com o córtex pré-frontal ainda em conformação, deixarão de ser prejudicados, como são hoje, pelo consumo de maconha, que lhes tira, no mais das vezes (as exceções só confirmam a regra), a energia necessária para o estudo, para o trabalho, para a disciplina, enfim? Acho que não.
Estamos diante de duas posturas: a) uma aumentará, fatalmente, a exposição das pessoas, especialmente os adolescentes, às drogas; a) a outra tentará criar ainda mais dificuldades. Eu escolho o segundo caminho, sem hesitar.
Tags: descriminação das drogas, drogas