IMPUNIDADE MARCA CASOS DE ABUSO CONTRA CRIANÇAS





IMPUNIDADE MARCA CASOS DE ABUSO CONTRA CRIANÇAS

Nos últimos oito dias, quatro casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes vieram à tona nas páginas do DIÁRIO. De uma criança de três anos abusada por um adolescente de 13 a uma irmã que engravidou do padrasto, saiu de casa e seis anos depois descobriu que o abusador estaria vitimizando a irmã mais nova. Todas essas vidas despedaçadas agora precisam continuar de alguma forma. E quem ajuda essas famílias nesse difícil trajeto? Quem ajuda a recolher os pedaços que restam e continuar a caminhada?

Obviamente, nem todos os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são divulgados na mídia. Da maior parte deles, a grande massa nem toma conhecimento, mas dificilmente algo que ocorre nos bairros do Curió-Utinga, Castanheira, Marambaia, Atalaia, Val-de-Cães, Águas Lindas, Aurá e Souza, bairros que compõem o Distrito Administrativo do Entroncamento (DAENT), foge ao conhecimento da conselheira tutelar Jeruza Honorato, 35 anos. Grávida do primeiro filho, ela precisa lidar com essa difícil realidade, não como quem segura uma página de jornal, mas como quem carrega uma criança no colo – às vezes literalmente.

“Já depois de grávida, chegou até mim o caso de duas meninas de sete anos que foram abusadas pelo padrasto de uma. Quando a enteada chegava da escola, ele a mandava chamar a colega e então ele fazia com as duas”, relatou. Segundo ela, o Conselho Tutelar é a porta de entrada desses casos. Cabe ao conselheiro a tarefa de encaminhar as vítimas aos órgãos cabíveis. Ou seja, ela precisa lidar quase diariamente com pessoas no auge do desespero, quando muitas casas desmoronam no meio da sala, ou no meio do quarto.

Segundo a conselheira, tal problema, que muitas vezes é associado à pobreza e ignorância, é muito mais “democrático” do que as pessoas querem admitir. “Uma vez eu acompanhei o caso de uma mulher que contratou um professor particular para dar aula ao filho de nove anos num cômodo que construiu exclusivamente para estudos. Enquanto eles ficavam lá, naquele tempo estipulado, ela deixava a sala trancada”, compartilhou. A mãe só descobriu mesmo quando tentou abraçar o filho e aquele gesto lembrou o do agressor. A partir daí, a mãe descobriu do pior modo que esse tipo de problema nem sempre está no lado de lá.

Cabe ao conselho a tarefa de encaminhar os casos ao Pro Paz da Santa Casa nos dias de semana e aos fins de semana levar a uma delegacia e ao Instituto Médico Legal para possíveis laudos. “Nosso trabalho não termina quando apresentamos, pois às vezes precisamos correr atrás de informação e ficar em cima para ver se a coisa se encaminha”, alegou. 



BICHOS DO MATO

J. cuida do filho e da irmã. Perante a lei, os dois são filhos do mesmo pai, uma vez que ela engravidou quando tinha 13 anos do padrasto com quem viveu alguns anos, no quilômetro 14 da PA-252, município do Acará. Ela afirma que era abusada desde os 11 anos, até que engravidou e teve que sair de casa porque a mãe não acreditou que o companheiro que assumiu as filhas de outro pudesse ter feito aquilo. Hoje com 21 anos, ela percebeu a irmã de 12 anos estranha, sem brincar como antes. A irmã então confessou. J. gravou a confissão no celular e a apresentação disso ao Conselho Tutelar rendeu a prisão de Vilson Silva dos Santos, 48 anos, no dia 16/11, quando supostamente tentava fugir depois de ter ameaçado as cunhadas que apoiavam a sobrinha na constrangedora denúncia. Como a mãe ficara de novo a favor do marido, a justiça determinou que a guarda da irmã ficasse com J.

Desde 2005, Joênia Nunes, de 31 anos, acompanha casos assim. Agente da Cáritas de Cametá, na região do Baixo Tocantins, o trabalho dela é garantir direitos onde o Estado não consegue chegar. “O nosso trabalho é sensibilizar a população e formar as crianças para poder dizer o que está acontecendo quando houver casos assim”, explica. Segundo ela, nas comunidades do campo, esse tipo de prática é comum. “O grande problema é que crianças com mais de 10 anos até falam, mas quando é mais nova que isso elas têm mais dificuldades para se expressar”, comparou.

Ela explica que, quando o abuso vem de dentro do próprio lar, a criança acaba sofrendo violência três vezes, pois, além da violência sexual, ainda enfrenta o descaso da mãe (em geral) e sofre por não ter condições de buscar ajuda por si só.

“Desde 2009, quando veio à tona a CPI da Pedofilia, muitos casos começaram a ser denunciados, mas infelizmente quase nada dessas denúncias resultou em alguma coisa concreta, porque, quando chega ao Ministério Público, a coisa emperra. Aí as pessoas acabam ficando receosas de ter que passar por todo o sacrifício de expor a intimidade para pessoas estranhas, para que daqui a pouco isso não dê em nada”, desabafa.

Em Cametá, segundo dados divulgados pelo Conselho Tutelar de lá, de 2009 a maio desse ano, já foram 331 crimes sexuais registrados. Questionada sobre quantos desses casos resultaram em punição para os denunciados, Joênia não titubeou: “Menos de um por cento. Tem hora que bate um desânimo, mas a missão é maior”, reforçou.



RECONSTRUINDO SONHOS

“As pessoas me perguntam como eu consigo lidar dia a dia com uma história mais horrível que a outra. Eu respondo que me sinto muito bem quando, depois do atendimento, pessoas que chegaram à minha sala completamente perdidas saem com vontade de continuar vivendo”, se orgulha a psicóloga Márcia Monteiro, que há 15 anos trabalha com vítimas de violência. Ela afirma que, no caso de crianças, o importante é sempre acreditar nelas. 

“Quando a criança muda o comportamento bruscamente, é importante que se procure saber o porquê”, recomendou. Ela contou a história de uma mãe que a procurou para atender as filhas, que estavam muito desobedientes e nem queriam ir mais à igreja. Quando foi conversar com as meninas, descobriu que elas não queriam ir porque elas sempre pegavam carona com o pastor, que abusava delas no trajeto até a casa de Deus. “A mamãe nunca ia acreditar na gente”, teriam dito as meninas, que teriam 6 e 7 anos na ocasião.

Como explica a psicóloga, casos de abuso que envolvem parentes formam nas pessoas em desenvolvimento um misto de amor e ódio. Ao mesmo tempo em que elas não ficam com muita raiva do avô, do padrasto ou da mãe que não acredita nela, ela sente pena deles, não quer que vão presos ou que sofram.

“Precisamos entender que isso é uma coisa cultural, que precisa ser trabalhada com calma. Uma vez, fui atender numa comunidade do interior e a matriarca da família chegou a me dizer que era melhor um pai fazer com a filha do que alguém de fora. Certamente essa mulher foi abusada quando criança”, argumentou. A relação patriarcal, em que o homem se impõe através da força, tem a mesma proporção em relação a casos em que o abusador é homossexual. A psicóloga pontuou que todos nós estamos sujeitos a sentir desejos sexuais por crianças e adolescentes e até mesmo por filhos e parentes. A diferença é que uma pessoa de bom senso vai se autopunir e as que cometem abuso não o fazem. “O caso do pedófilo é o extremo disso. É uma doença que precisa ser tratada”, concluiu.

(Diário do Pará)