Estupro coletivo de estudante na Índia inspira manifestações em países vizinhos


Protestos pedem direitos iguais e o fim da violência

ANGELA PINHO
POR JUSTIÇA Manifestante participa de protesto do lado de fora da casa do primeiro-ministro do Nepal. Nepalesas criticam a atuação da polícia em casos recentes (Foto: Navesh Chitrakar/Reuters)











A jovem Sita Rai, de 21 anos, voltou ao Nepal em novembro passado, depois de passar uma temporada como empregada doméstica na Arábia Saudita. Segundo seu relato, ao chegar ao aeroporto foi estuprada por um policial e roubada por agentes de imigração. Diferentemente de muitas vítimas de estupro no país, Sita denunciou seus agressores com a ajuda do irmão mais velho. Acaba de abortar uma gravidez decorrente do ataque. Apesar das circunstâncias chocantes da agressão que denunciou, Sita não conseguiu causar grande comoção com sua história. Até que algo, longe dali, aconteceu. 

A história de Sita Rai – o nome é um pseudônimo – era apenas mais um caso de violência sexual entre muitos outros. Após a série de protestos na Índia pelo cruel estupro coletivo que matou a estudante Jyoti Singh Pandey, tornou-se um símbolo nacional. Os nepaleses sentiram-se encorajados a olhar para sua própria situação de desrespeito aos direitos básicos das mulheres. Expuseram o caso de Sita Rai e de outras vítimas de violência e discriminação no Nepal. “Depois de ver as notícias na Índia e o recente incidente com Sita Rai aqui no Nepal, os cidadãos daqui também acordaram”, diz Sushil Gurung, de 36 anos, que trabalha como voluntário na área de saúde mental. De acordo com os dados mais recentes das Nações Unidas, foram registrados 69 estupros no Nepal em 2006. Muito pouco perto da realidade, dizem os ativistas. Segundo eles, a maioria das mulheres atacadas teme prestar queixas, especialmente pelo preconceito e desrespeito existentes na polícia local.
O estupro de uma jovem nepalesa ganhou destaque
após a comoção pela morte
de estudante na Índia 
Desde 28 de dezembro, Sushil participa de manifestações diárias em Katmandu, a capital nepalesa. A ideia é pressionar o governo por mais segurança e tratamento digno das autoridades às mulheres. No Facebook, ele divulga a agenda dos protestos e dissemina artigos e entrevistas sobre o movimento. Nas primeiras manifestações, o palco foi a porta da casa do primeiro-ministro, no bairro de Baluwatar. A área deu um nome ao movimento, de “Occupy Baluwatar”, que nas próximas semanas pretende chegar a outras cidades do Nepal. “É um movimento pacífico sem filiação com nenhum grupo específico. É um movimento do povo”, diz Sushil. As mulheres compõem a maioria do movimento, mas há outros homens, como ele. Além de crianças.
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O principal alvo dos protestos é a impunidade. Os manifestantes exigem o esclarecimento de outros casos de violência contra mulheres em que haja indícios de acobertamento das investigações. Um deles envolve Chhori Maiya Maharjan, mãe de duas manifestantes, desaparecida há dez meses. Suas filhas reclamam de falta de empenho da polícia. Em outro, um casal quer saber o que aconteceu com sua filha, Saraswati Subedi, morta na casa dos patrões. Um laudo oficial apontou suicídio, mas eles fizeram uma série de questionamentos sobre a investigação.
DE LUTO Indianas acendem vela para a estudante que morreu depois de sofrer estupro coletivo. O governo prometeu um julgamento rápido dos acusados (Foto: Rupak de Chowdhuri/Reuters)
A indignação nascida na Índia não contagiou apenas os nepaleses. Em escala menor, mas não com menos determinação para mudar seu vergonhoso statu quo, outros países do sul da Ásia registraram mobilizações pelo fim da violência contra as mulheres. Em Bangladesh, estudantes e professores realizaram um protesto pela punição de quatro homens acusados de estuprar uma adolescente numa cidade do interior. No Paquistão, ativistas reuniram-se na capital, Islamabad, em frente a um mercado para um ato de solidariedade à indiana, no primeiro dia do ano. Acenderam velas, rezaram pela estudante e reivindicaram uma lei para coibir a violência doméstica no próprio país. 
A reação além das fronteiras explica-se pela brutalidade do ataque contra a jovem indiana. Jyoti foi estuprada num ônibus de Nova Délhi, em 16 de dezembro, por seis homens. Foi ainda espancada e jogada do veículo em movimento, com um amigo, também agredido. Morreu no último dia 29. O crime chocou o país e levou milhares de indianos às ruas, numa atmosfera que provocou o cancelamento dos festejos indianos pela virada do ano. O país percebeu que precisava se curar de uma doença grave. Só em 2011, foram registradas na Índia 24.206 acusações de estupro, de acordo com o Escritório Nacional de Registros de Crimes. Um a cada 22 minutos – como em outros países, estima-se que a taxa seja apenas uma pequena parte da verdadeira realidade. Em 2011, somente um quarto das queixas resultou em condenações. O grau de violência deu a Nova Délhi a infame alcunha de “capital do estupro”.
Manifestações por mais direitos, mobilização por meio de redes sociais, efeito dominó e combate a arcaísmos que pareciam intocáveis. Alguns elementos presentes nos protestos atuais no sul da Ásia levaram analistas a traçar um paralelo com a Primavera Árabe, a onda de protestos contra regimes autoritários no norte da África e no Oriente Médio. O cineasta indiano Shekhar Kapur comparou Nova Délhi à praça da capital do Egito, onde se concentravam os milhares de manifestantes que provocaram a queda do ditador Hosni Mubarak. “Délhi parece mais a Praça Tahrir da Índia”, disse em sua conta no Twitter o diretor do premiado Elizabeth. O espanto do governo indiano ao se ver confrontado pelas manifestações é indício de que uma mudança pode estar se configurando. O ministro das Finanças, Palaniappan Chidambaram, chegou a comparar os protestos a um “flash mob”, manifestações-relâmpago em locais públicos organizadas pela internet com qualquer propósito, político ou não. “Acho que não estamos completamente preparados para lidar com isso”, disse.
Depois de reagir com violência contra os manifestantes, o governo entendeu que deveria fazer algo para aplacar a ira popular. Anunciou que o julgamento dos acusados pelo estupro da estudante terá um rito diferenciado, ou seja, mais rápido. Na segunda-feira 7, começou com tumulto a primeira audiência de cinco dos seis acusados – o sexto será julgado separadamente por ser menor de idade. O advogado de um dos réus foi repreendido por colegas por defender acusados de um crime considerado tão brutal, e a ordem dos advogados local chegou a recomendar que nenhum profissional os representasse. A promotoria deve pedir a pena de morte.
Os avanços na Índia dependem
de mudança no tratamento
das mulheres na família 
A Índia já tem uma Constituição considerada progressista em relação aos direitos das mulheres, mas isso ainda não serviu para tornar a igualdade entre os sexos um valor apreciado por toda a sociedade. “Enquanto existem leis para garantir que as mulheres tenham uma participação igual na propriedade da família, sua participação continua a ser negada por causa da atitude dos homens – irmãos e pais – dentro da própria família”, afirma Sanjay Srivastava, professor de sociologia da Universidade de Nova Délhi. “Muitos homens indianos ainda pensam que uma mulher que vai assistir a um filme à noite, com o namorado, será parcialmente responsável se for atacada.”

Os próprios protestos evidenciaram os tabus que os indianos terão de enfrentar. Do lado dos manifestantes, estão alguns homens e numerosas mulheres, principalmente jovens, que ganharam recentemente independência financeira nos centros urbanos e passaram a reivindicar mais segurança e igualdade. De outro, pessoas comuns e celebridades nacionais ainda culpam as próprias mulheres pela violência sofrida, ou dizem que elas até têm direito à segurança, desde que se comportem de determinada maneira. “Isso aponta para a falta de consenso sobre as possíveis causas e também soluções para o problema”, diz a socióloga Mirian Ribeiro de Oliveira, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo. “Numa sociedade patriarcal como a indiana, mudanças na percepção sobre o papel e o valor das mulheres são fundamentais para protegê-las. E esse é um processo de longo prazo, que envolve medidas educacionais, nas escolas e na família.”
Lora Prabhu, diretora de uma organização não governamental voltada a ajudar mulheres pobres da Índia, também vê com cautela a possibilidade de uma rápida mudança de cultura. Ela lembra que, com apenas 10% de mulheres no Parlamento indiano, elas têm voz limitada na elaboração de políticas públicas. Lora afirma já ser possível identificar uma maior participação feminina na política nacional e um aumento na denúncia de crimes. Para o professor Sanjay Srivastava, um primeiro avanço já pode ser comemorado: a quebra do silêncio em torno do tema. “A mobilização incentivará mulheres em outras partes da Ásia a falar contra a violência. Um motivo que frequentemente as impede de fazer isso é a pressão familiar, que as convida a simplesmente ‘sorrir e aguentar’”, diz. “Manifestações abertas, realizadas por mulheres, podem definir outro exemplo de comportamento.”

O desfecho do caso de Jyoti Singh Pandey será determinante para toda a região. Nepal, Bangladesh e Paquistão são diferentes da Índia em termos culturais, religiosos e políticos. O grau de organização das mulheres também não se compara com o das indianas, mais articuladas num país onde existe uma crescente classe média urbana. Todos compartilham, no entanto, do tratamento desigual, preconceituoso e muitas vezes violento dado às mulheres, uma triste realidade que a pobreza e a falta de acesso à educação perpetuam. Que cidadãos tenham decidido ir às ruas para finalmente expressar sua indignação ao menos dá às mulheres a esperança de um futuro melhor.
http://revistaepoca.globo.com/Mundo/noticia/2013/01/estupro-coletivo-de-estudante-na-india-inspira-manifestacoes-em-paises-vizinhos.html