PEDOFILIA MT:Abusos e falta de transparência nas punições prejudicam imagem da Minustah

O vídeo que sugere o estupro de um rapaz haitiano por soldados uruguaios vazado para a internet no começo de setembro choca pela imagem mas não se trata de um episódio sem precedentes. Durante os sete anos da Minustah (missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), houve outros casos de suspeita de abuso sexual cometidos por militares e policiais da ONU, seguindo o mesmo padrão de outras missões de paz pelo mundo. O que não reduz sua gravidade, ao contrário. Reflete a complicada a relação de uma força militar estrangeira em uma sociedade vulnerável como a haitiana.

Nesses casos, como aconteceu com os uruguaios, os soldados foram repatriados e ninguém sabe se e como foram punidos. Nos primeiros dois anos da missão brasileira, por exemplo, segundo uma alta fonte militar ouvida pela Pública, dois soldados brasileiros foram repatriados depois de uma haitiana acusá-los de estupro dentro de uma base militar.

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"Claro, houve alguns deslizes, uns pequenos que aconteceram e foram devidamente punidos", comenta uma fonte militar de alta patente que pediu anonimato. "Teve gente repatriada. No nosso caso houve um incidente que não ficou comprovado, numa das bases de nossa companhia. Foi a denúncia de uma mulher que teria sido violentada. No inquérito realizado pela ONU, na seção de direitos humanos, ficou provado que ela freqüentava a base, se insinuava". Segundo ele, embora o inquérito não tenha comprovado o crime, o comando do exército decidiu repatriar "imediatamente" os dois envolvidos. O exército foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou sobre esse caso.

"Há muitos problemas em relação às forças de paz", conta Inga Britt-Ahlenius, que foi diretora do Oios (Office of Internal Oversight, nome em inglês), uma espécie de controladoria da ONU, entre 2005 e 2010.

"O maior problema é o acordo com os países que contribuem com as força de paz, segundo o qual eles têm a responsabilidade de investigar e punir os seus soldados acusados de abusos. A ONU não tem nenhum poder de aplicar a lei mesmo nos casos em que o Oios faz a investigação e produz um relatório sobre o caso", diz ela.

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"Também há o problema de alta rotatividade. Os soldados só ficam no país por seis meses e, por muitas vezes, são repatriados antes que a investigação preliminar possa estar concluída", diz Ahlenius. Durante seu período à frente do Oios, ela iniciou dezenas de investigações de abusos sexuais cometidos por soldados da ONU.

O número oficial de casos investigados envolvendo explorações sexuais e abusos foi reduzido de 108 em 2007 para 33 em 2010. Porém, mais de 200 acusações do tipo continuam sem solução.

"Quando se consegue finalmente realizar uma investigação, é raro que as descobertas do relatório sejam levadas a cabo. Muitas vezes enviamos pedidos de informação depois dos soldados serem repatriados e não obtemos resposta", diz Ahlenius, que deixou a ONU acusando o secretário-geral da entidade, Ban Ki-Moon, de agir contra a transparência.

Sexo por comida, celular ou eletricidade

Uma rápida consulta aos relatórios do Oios revela outros casos investigados internamente por "exploração sexual e abuso". Poucos deles chegaram à opinião pública, embora um relatório da instituição de 2005 sugerisse que a Minustah deveria "considerar informar a população local sobre casos de má conduta sob investigação", além dos resultados de investigações e a decisões finais. Por sua vez, a Minustah respondeu que a população local deveria ser consultada “caso a caso” e que "não deveria haver uma regra geral para informar o público sobre esses casos". O mesmo relatório afirmava que "um numero significativo de membros da equipe (61%) admite a existência de mau comportamento, mas este não é detectado e punido".

Agência Pública

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Um dos casos mais rumorosos ocorreu em 2007 e levou ao repatriamento de 114 soldados do Sri Lanka, incluindo o vice-comandante do contingente. Eles foram acusados de "transações sexuais, particularmente com o pagamento a prostitutas, algumas delas adolescentes". "Em troca de sexo, as crianças recebiam pequenas quantidades de dinheiro, comida e, algumas vezes, celulares", diz o relatório da ONU. "A Oios descobriu que a exploração sexual e o abuso eram frequentes, ocorriam normalmente à noite e virtualmente em todas as localidades onde o contingente era empregado".

Nesse caso, apontado por Ahlenius como uma exceção, os soldados enfrentaram julgamento militar ao retornar para o seu país. "Foram repatriados rapidamente e passaram por uma corte marcial. O Sri Lanka pediu a nossa ajuda, e nós colaboramos para a instrução do processo. Mas é o único caso que eu conheço em que as descobertas do relatório foram levadas a cabo".
 

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Outro relatório da ONU, este de 2008, aponta, sem revelar a nacionalidade dos soldados envolvidos, que "membros do contingente militar trocaram comida por serviços sexuais com duas mulheres locais, uma das quais, menor de idade. A Oios também descobriu que a menina deu à luz a uma criança em um veículo militar, na companhia de diversos soldados, a caminho do hospital. O bebê seria filho de um oficial". Como relatado por Ahlenius, o documento conta que o Oios "referiu o caso ao país contribuinte para que tomasse a ação apropriada. No entanto, o departamento não recebeu nenhuma resposta". 

No começo deste ano, a controladoria reporta outro abuso em troca de sexo: "O Oios concluiu que um oficial sênior facilitou o emprego casual de uma mulher local e conseguiu prover uma ligação clandestina de eletricidade para outra, em troca de favores sexuais; e que três soldados travaram relações sexuais com mulheres locais que resultaram no nascimento de crianças". 

O relatório não revela a nacionalidade, mas segundo Ahlenius, trata-se de outro escândalo envolvendo soldados uruguaios. Os soldados que aparecem no vídeo vazado em setembro foram repatriados e estão presos.Porém, segundo a sueca, no caso precedente o Oios retirou-se formalmente da investigação conduzida pelo Uruguai por "desaprovar seus métodos". 

"O país que contribui com tropas havia designado um dos oficiais do contingente na Minustah para liderar a investigação. Mas como a metodologia não alcançava os padrões do Oios, seus investigadores se retiraram", diz o relatório. Entre os métodos contestados estão, por exemplo, o fato de testemunhas assinarem registros de entrevistas em branco antes mesmo de realiza-las. 

Embora o comando militar brasileiro na Minustah seja visto como muito bem-sucedido, Inga-Britt Ahlenius deixa claro que é responsabilidade dos comandantes brasileiros fazer com que os soldados respeitem a norma pétrea dos boinas azuis: "prostituição, não". 

"Você tem um monte de homens jovens chegando em um lugar isolado, com uma população muito pobre, e essa situação é muito arriscada. Portanto, há uma responsabilidade muito grande do comandante militar de cada contingente para evitar" esses episódios. 

* Esta reportagem integra uma série especial sobre o Haiti preparada pela Agência Pública. 

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