Brasil soma 250 mil em regime de trabalho infantil doméstico, a pior forma de exploração de crianças e adolescentes. Pará é campeão dessa prática - e ainda não se sabe se a PEC das domésticas mudará ou agravará essa situação.
Em meio a adaptações às novas regras estabelecidas pelo Projeto de Emenda Constitucional que ampliou os direitos trabalhistas de empregados domésticos em todo o país, no Pará outra realidade chama atenção: alvo de diversas campanhas educativas e de um plano nacional de prevenção e erradicação desenvolvido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, o trabalho infantil doméstico permanece assombrando lares. Considerada pelo decreto 6481/2008 como a pior forma de trabalho infantil, a atividade doméstica ainda é desempenhada por mais de 250 mil crianças e adolescentes em todo o país e há dez anos desperta o interesse da pesquisadora paraense Danila Cal, professora do curso de comunicação da Universidade da Amazônia (Unama). Mestre em comunicação e sociabilidade contemporânea pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Danila expõe em seus trabalhos as percepções das principais protagonistas envolvidas com o trabalho doméstico infantil no Pará: são patroas (foco de seu mestrado, de 2007) e as próprias trabalhadoras domésticas (mais recentemente, para a pesquisa do doutorado também pela UFMG). Ela conversou com os repórteres do DIÁRIO Cintia Magno e Ismael Machado:
P: O Brasil vive um momento de mudança em relação às leis que regem o trabalho doméstico, mas uma prática cultural é a franca utilização da mão de obra infantil nesse segmento. A senhora acredita que agora, na prática, as pessoas vão olhar com mais cuidado tudo isso?
R: Durante o meu mestrado entrevistei patroas que empregavam meninas trabalhadoras domésticas e, agora, no doutorado, entrevistei meninas e mulheres que foram trabalhadoras infantis domésticas. A nova legislação para essas mulheres é uma grande conquista. Ouvi relatos de todos os tipos e de todas as naturezas. Do patrão que acha que tem o poder de usar do corpo da menina à menina doméstica que na casa é tratada como propriedade da família. A PEC traz um resultado muito grande para essas mulheres em relação ao reconhecimento que as empregadas domésticas devem ter na nossa sociedade. É uma reparação em relação a toda uma história escravocrata e de exploração de mulheres pobres, negras... Mas tenho dúvidas se a PEC vai inibir o trabalho infantil doméstico ou se ela vai estimulá-lo.
P: Para fugir desse controle da nova legislação pode se voltar a utilizar essa mão de obra de uma maneira disfarçada de ajuda?
R: É. Mas isso não é nem uma situação planejada pelas pessoas. Tenho a preocupação porque o trabalho infantil doméstico é considerado um não trabalho, uma não atividade profissional. É considerado uma ajuda mútua. ‘Eu ajudo a adolescente dando uma oportunidade para ela e ela me ajuda cuidando do meu filho, reparando o menino’. O reparar quer dizer que ela não está trabalhando. Ela só está reparando. É por essa carga de ‘não trabalho’ que acredito que ele pode acabar sendo incentivado, como se estivesse fora do alcance da legislação.
P: A prática de trazer meninas do interior para trabalhar na cidade é algo costumeiro, cultural?
R: Na minha análise, via essa referência ao lado cultural e me questionava muito sobre isso. Quando a gente acredita que o trabalho infantil doméstico é um problema cultural, é como se estivesse justificando a existência dele. É como se dissesse que não é possível ser mudado, porque é cultural. Tenho muita preocupação porque parece que não tem solução, enquanto, na verdade, tem. O problema do trabalho infantil doméstico não é só de costumes. O problema é que não existem, muitas vezes, condições nos lugares de origem, nos municípios dessas crianças e desses adolescentes, para que eles permaneçam com suas famílias, para que consigam estudar com qualidade. Agora tem uma coisa: a maior tendência do trabalho infantil doméstico, hoje, não é somente essa trajetória de vir do interior para cá. A maior tendência do trabalho infantil doméstico hoje são mulheres que são trabalhadoras domésticas adultas que precisam de pessoas para cuidar de seus filhos enquanto elas próprias estão cuidando dos filhos dos outros. Elas pegam meninas para ‘reparar’. Pode ser uma parente, uma prima, uma sobrinha, ou pode ser uma vizinha. E aí a gente tem um novo formato do trabalho infantil doméstico.
P: Essa redução da sazonalidade capital-interior pode ter relação com políticas sociais como o bolsa família? Bolsas sociais ajudaram a minimizar isso?
R: Acredito que sim. Mas para o trabalho infantil doméstico ser reconhecido como um tipo de trabalho que merecia atenção pública nesse sentido, foram anos de luta de organizações sociais e internacionais. E começou com o PETI [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil]. O trabalho infantil doméstico não estava incluído como uma das atividades que daria bolsa para a menina que fosse retirada. A partir do momento que organizações como a Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], a OIT [Organização Internacional do Trabalho] e o Cedeca-Emaús, aqui em Belém, começaram a se organizar para reivindicar que políticas públicas prestassem atenção nessas crianças e nesses adolescentes que estavam exercendo esse tipo de trabalho, aí vieram algumas conquistas. Desde 2008, por exemplo, o trabalho infantil doméstico é considerado uma das piores formas do trabalho infantil e isso quer dizer que não pode ser exercido por menores de 18 anos. Agora, é bom dizer que trabalho infantil doméstico é diferente de tarefa doméstica. Uma coisa é a criança ou adolescente colaborar com o trabalho do adulto de forma pedagógica, como um aprendizado para o futuro. Outra é a criança e o adolescente serem os únicos responsáveis por atividades que caberiam a um adulto. Entrevistei uma menina que hoje tem 12 anos, mas desde os quatro anos trabalha como doméstica na casa da avó. Colocavam um banquinho para ela lavar louça e isso não era uma atividade lúdica. Era obrigação, aos quatro anos. Isso é grave.
P: O trabalho infantil doméstico já foi alvo de muitas campanhas educativas e talvez as pessoas imaginem que hoje isso não exista mais, ou que exista bem menos. Qual a situação aqui no Pará?
R: O dado mais recente que a gente tem é uma análise da PNAD de 2011. Por ser uma pesquisa por amostragem, ela não dá conta do todo. Eles calculam uma amostra e realizam a pesquisa. Esses dados foram subdivididos pelo Ministério Público do Estado do Ceará a partir da PNAD. No caso da Região Metropolitana de Belém, o curioso é que aparece que não há nenhuma adolescente entre 10 e 14 anos como trabalhadora infantil doméstica. Mas é claro que isso não condiz com a realidade, porque eu mesma, neste mesmo período, entrevistei várias meninas que estavam trabalhando como domésticas. Se justifica isso justamente porque é uma pesquisa por amostragem. E o trabalho infantil doméstico não é considerado trabalho. Então a pessoa pode estar lá, mas ela não estaria trabalhando. Ela é uma agregada da família, uma cria da casa. As estatísticas sobre o trabalho infantil doméstico não são precisas por conta desses fatores.
P: Como se avalia esse problema hoje no campo?
R: A questão do campo é polêmica demais. Uma coisa é importante de ser esclarecida: existe uma discussão se o trabalho infantil é maléfico, realmente, para a criança e para o adolescente, ou se ele traz benefícios. Isso é presente em relação ao trabalho infantil doméstico, tanto que nós temos várias histórias de sucesso de trabalhadoras domésticas que começaram quando crianças e, por estarem naquelas famílias, frequentaram uma universidade. Mas do meu ponto de vista, toda a luta e ação das organizações sociais contra o trabalho infantil é benéfica porque, na balança, o trabalho infantil doméstico traz mais malefícios do que benefícios. No campo a questão é mais complicada ainda, porque as relações são diferentes. O trabalho no campo é uma forma de sociabilidade. No campo, as crianças acompanham os pais no trabalho como uma forma de estímulo à relação familiar. Então simplesmente dizer que a criança não pode acompanhar o pai na lavoura é complicado. O trabalho que tem que ser feito aí é muito mais fundo: de perceber qual é o papel do trabalho naquela comunidade e o que isso está trazendo de prejuízo para a criança e para o adolescente. Nesses casos, a proibição de qualquer relação de trabalho pode acabar trazendo prejuízos.
P: Qual seria a solução? Um pouco de trabalho, escola e um tempo para ser criança, realmente, seria um equilíbrio para questão no campo?
R: Existe na nossa legislação a política de alternância. Mas é um ponto muito polêmico, porque as escolas de alternância funcionariam de acordo com o calendário rural e há muita discussão de que isso estaria favorecendo o trabalho infantil e não deveria ser assim. Penso que, para formular essa solução, a gente teria que olhar para o significado do trabalho nessas comunidades. O que o trabalho significa? Como essas crianças são socializadas? Quais as expectativas de futuro delas? Como dar oportunidade para que escolham que caminho seguir? Acho que o caminho é ouvir, é prestar atenção nesses próprios grupos.
P: No caso de Belém, existem diferenças entre centro e periferia?
R: Entrevistei patroas, meninas trabalhadoras domésticas e mulheres que foram trabalhadoras infantis domésticas em diferentes bairros. Não percebo muita diferença, a não ser que as patroas dos bairros de classe mais alta não querem mais contratar meninas para o serviço doméstico. Mas elas não querem mais fazer isso não por conta de um entendimento dos direitos das crianças. Elas não querem fazer isso simplesmente porque vai dar mais trabalho. Antigamente, elas diziam que pegavam uma menina do interior e a moldavam do jeitinho da família. Hoje não: elas dizem que as meninas estão mais arredias. Nos outros bairros, percebo que ainda há bastante trabalho infantil doméstico nessas condições: a própria empregada doméstica adulta que precisa de alguém para tomar conta de seus filhos.
P: Você fala dessa dificuldade de identificar o trabalho infantil doméstico porque ele não apareceria como um trabalho. Então, o que caracteriza o trabalho infantil doméstico? Às vezes a própria criança ou a família acaba acreditando que a menina não trabalha, que apenas ajuda...
R: Primeira coisa: se uma família tem uma criança ou adolescente que não é dessa família, essa guarda precisa ser regularizada. A gente precisa entender qual é a situação daquela criança naquela família. Ela está sendo tutelada ou é uma filha adotiva?. A segunda coisa é pensar o que essa criança faz em relação às outras crianças da família. O conjunto de tarefas é dividido entre todas as crianças daquela família ou é aquela criança a responsável? Nesse cenário é possível a gente identificar quem é a trabalhadora doméstica. Mas a definição principal é que o trabalho doméstico é exercido quando uma criança ou um adolescente são os únicos responsáveis por determinadas tarefas que caberiam a um adulto dentro da casa. A criança pode estar exercendo trabalho doméstico mesmo sendo da família. Eu entrevistei adolescentes cujos pais saíam para trabalhar e elas, garotas de 13, 14 anos, limpavam a casa, faziam a comida, cuidavam dos dois irmãos menores e depois ainda tinham que ter condições de ir para a escola e aprender alguma coisa. A gente não pode é culpar os pais por isso, ou culpar a cultura por isso. A questão é que a ausência de políticas adequadas de geração de renda ou de creches para essa faixa etária acaba gerando esse tipo de costume, de necessidade. As pessoas tentam dar um jeito de seguir com as próprias vidas. O trabalho doméstico não tem jornada fixa. A PEC está tentando fazer isso, fixar em oito horas com mais duas horas de horário extra se for o caso. Mas no caso do trabalho infantil doméstico, quando a criança mora com aquela família, o trabalho nunca acaba.
(Diário do Pará)





