A TARDE inicia a série "filhos do preconceito". Serão cinco reportagens que abordarão casos de crianças, adolescentes e jovens que por questões familiares, direta ou indiretamente, são obrigados a conviver com o preconceito social. Os textos serão publicados semanalmente, aos domingos. Nesta edição, será abordado o drama dos filhos de mulheres que foram vítimas de abuso sexual.
Ao pedir que defina o sentimento que tem pela filha Rafaela*, de 5 anos, a universitária Ana Silveira*, de 23, silencia. Só depois de alguns minutos, responde: "Não sei descrever".
Justamente neste momento começa a tocar a música Socorro, de Arnaldo Antunes, que em um trecho diz: "Socorro, eu não estou sentindo nada. Já não sinto amor, nem dor. Já não sinto nada".
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Ana ouve a canção e afirma: "É como essa música. É indiferente. Não há sentimento bom, nem ruim. Simplesmente não sinto nada".
Enquanto faz essa declaração em sua casa, no Cabula, a pequena Rafaela brinca em um canto da sala.
Pela idade, ainda não é capaz de entender a razão de a mãe não conseguir sentir o amor incondicional comum a tantas outras mulheres. E talvez jamais saiba que é fruto de um estupro. "Por mim, ela jamais saberá", afirma Ana Oliveira.
A ausência de vínculo, ou do amor materno, é apenas um dos possíveis problemas que o filho de alguém que foi vítima de um estupro pode sofrer ao longo da vida.
Não apenas a mãe pode ver a criança como fruto da violência sofrida e rejeitá-la, mesmo sem desejar conscientemente. Às vezes ocorre justamente o contrário.
"Minha infância ficou quebrada, e minha vida, incompleta. (...) Sentia muita raiva da minha mãe porque ela me teve sem ter me desejado. Sempre tive o sentimento de que ela se importava comigo, mas não me amava (...)", conta a gerente de varejo Cláudia Salgado, 28 anos, no artigo Sou filho do estupro e a favor do aborto, publicado no blog Olga e reproduzido pela mídia e em redes sociais.
Apesar de afirmar que hoje, mais madura, compreende a atitude da mãe e que entende o quanto a decisão deve ter sido difícil, Cláudia diz que preferia não ter nascido.
"Acho muito mais digno interromper uma gravidez indesejada do que colocar uma criança no mundo para sofrer e passar necessidades. Hoje não sinto a menor vontade de ser mãe", revela.
Associação - O psicólogo especializado em terapia familiar Alexandre Coimbra afirma que, embora não seja uma regra, é natural que a mulher faça uma associação entre a criança e o agressor.
"Se a mulher tem ódio do estuprador, é natural que projete esse sentimento no próprio filho. A criança, no entendimento dela, é a materialização da violência praticada, daí a importância do trabalho psicológico com as vítimas", considera.
*Nomes fictícios