Tráfico de pessoas: Um submundo de exploração sem fronteiras

Crime transforma 3 milhões de pessoas em mercadorias por todo o mundo e movimenta 32 bilhões de dólares anuais
Aline Shayuri Yamada de Souza
Aline Shayuri

A legislação brasileira considera crime apenas o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual; ainda não existe punição para o tráfico para fins de trabalho escravo, trabalho doméstico, venda de órgãos e adoção ilegal.
O tráfico de pessoas é um crime invisível, frequente e preocupante que está em discussão não só entre autoridades de governo e órgãos policiais, mas também entre a população. A divulgação da novela Salve Jorge, da Rede Globo, que estreou no fim de outubro de 2012, colaborou com o aumento desse debate sobre a transformação de pessoas em mercadorias. Segundo dados da Polícia Federal, 475 inquéritos foram instaurados sobre o crime de tráfico internacional de pessoas entre 1999 e 2011 no Brasil.
Em fevereiro de 2013, o Ministério da Justiça lançou o 2º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em parceria com as secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Para aperfeiçoar a legislação brasileira, o MJ vai solicitar à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal pressa na apreciação de projetos de lei que ampliem os tipos de crimes envolvendo o tráfico de pessoas.
Atualmente, o Código Penal considera crime apenas o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Falta previsão legal para punir o tráfico para fins de trabalho escravo, trabalho doméstico, venda de órgãos e adoção ilegal.
O Congresso Nacional tem duas CPIs instaladas sobre o assunto. O presidente da CPI do Tráfico de Pessoas da Câmara, Arnaldo Jordy, garante que ainda neste semestre será apresentada uma proposta de legislação específica que adeque tudo o que foi observado como sendo vulnerabilidade da justiça brasileira para o efetivo combate ao tráfico de pessoas.
No senado, a relatora Lídice da Mata (PSB-BA) propôs a alteração do texto da Lei: de “crime contra a dignidade humana” para “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, alojar ou acolher pessoa, por meio de ameaça, coação ou qualquer outra forma de violência, sequestro, cárcere privado, fraude, engano, abuso de poder, financiamento, corrupção, ou qualquer outro meio análogo, para fins de exploração de alguém, independentemente de seu consentimento”.
Ela acredita que a mudança pode evitar casos como o da filha de Márcia*, vítima do tráfico para fins de exploração sexual na Espanha. "A pessoa que convidou minha filha percebeu a fragilidade dela porque tinha dois filhos, tinha vontade de me ajudar, e ela, então, agiu de má-fé". A mãe conta que quando a filha deixou de ser útil para a mulher que a levou para lá, foi jogada na rua. Até que um dia conseguiu ligar para casa e pedir que alguém conseguisse seu retorno para o Brasil porque estava sofrendo muito. "Ela voltou completamente desequilibrada mentalmente”, declara a mãe.
No esforço para a abordagem legal da questão, o MJ elaborou um guia de referência sobre o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas com o apoio do Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas Migratórias (International Centre for Migration Policy Development - ICMPD) da União Europeia. Quatro capítulos abordam temas como imigração, tráfico de pessoas no Brasil e no exterior, estrutura para o combate a esse tipo de crime, entre outros aspectos.

TRÁFICO DE PESSOAS
Pelo conceito do Protocolo de Palermo – um acordo internacional em que o Brasil é signatário –, essa atividade existe para diversas finalidades como exploração sexual, comercialização de bebês e crianças para adoção, trabalho escravo, trabalho doméstico, casamento servil e venda de órgãos.
De acordo com a legislação nacional, o crime de tráfico de pessoas se configura e se consuma com a saída da pessoa do seu país de origem e entrada em outro, ainda que não haja exploração. “Se ocorre qualquer flagrante enquanto o aliciador ainda está no aeroporto com as vítimas, a Polícia Federal não pode prendê-lo porque o crime não foi consumado”, afirma o delegado federal, Luciano Ferreira Dornelas.
No tráfico para fins de exploração sexual, as quadrilhas costumam agir mediante certos métodos. Antes da viagem, os aliciadores instruem as vítimas de como se portar no serviço imigratório. Além disso, dão dinheiro para que elas comprem roupas e vão ao salão de beleza. Também compram a passagem de ida e entregam muitas notas de euro para que elas mostrem ao serviço de imigração no aeroporto de destino. Assim, fingem que são turistas com dinheiro para gastar. Quando chegam ao local de trabalho, as vítimas têm os documentos e o passaporte retidos, são submetidas a cárcere privado e todo tipo de violência.
“A maioria das vítimas deseja viajar e sabe que a finalidade é a prostituição. No entanto, o crime acontece quando elas sofrem o engano”, diz a delegada federal e chefe da Unidade de Repressão ao Tráfico de Pessoas da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal, Vanessa Gonçalves Leite Souza. Esse engano se refere às condições em que a prostituição será exercida.
 “A pessoa sai do seu país de origem achando que sua dívida será apenas o valor da passagem. Entretanto, somam-se o valor das roupas que ela comprou antes de ir, mais cada dia que ela dorme num aposento, mais o que ela come e fica difícil de pagar”, conta Vanessa. Enquanto a dívida não é quitada, os relatos são de que a pessoa vira refém dos aliciadores.
O aliciamento normalmente é feito por uma pessoa próxima. “Não raro, é uma tia, uma prima, uma vizinha, uma amiga por quem a vítima tem o mínimo de confiança, que ela já sabe que foi para o exterior e voltou com um certo dinheiro”, afirma a delegada.
A maior dificuldade encontrada pelas autoridades no combate a esse tipo de crime é a falta de conscientização das potenciais vítimas. Elas não se veem como tal em grande parte dos casos porque sentem culpa por ter aceitado viajar e afirmam estar "pagando o preço".
Mas isso não significa que esteja afastada a configuração do tráfico de pessoas. O crime, então, subsiste mesmo que haja o consentimento.

VÍTIMA DO PRÓPRIO SONHO
A modelo Monique Menezes da Silva foi enganada dessa forma e conta que se perdeu no próprio sonho. Como já tinha viajado para a Itália a trabalho aos 14 anos, ficou encantada com o convite de um scouter (agenciador) chamado Junior Pelicano de uma agência em Nova Deli. "Eu contei a minha situação pra ele, eu tenho um filho, eu falei que tinha o sonho de ter a minha casa, de conseguir minha realização internacional, e confiei nele".
Monique conta que o contrato era para um período de seis meses, com salário de US$ 2100 mais o valor de cada trabalho que fizesse, além de motorista a disposição, aluguel e passagens. Ela conversou, pela internet, com duas moças que já "modelavam" naquele país. "Pelo que elas me falavam pela Internet, o contato que mantínhamos, elas não me contaram o que estava acontecendo, acho que por medo porque eu não sabia o que elas faziam", disse. Por não ter o inglês fluente, Monique leu pouco o contrato e assinou.
Ao chegar à Nova Deli, ela foi levada para uma casa com vários quartos onde viviam a francesa Anne Sabrina Savouyaud, dona da agência, as duas moças com quem Monique manteve contato e alguns empregados.
Os primeiros trabalhos foram de modelo, tirando fotos com roupas indianas para catálogos de lojas na internet. Mas, já na segunda semana, as coisas mudaram. E ela foi obrigada a se prostituir. "Eu ganhava US$ 40 por semana. Várias vezes fiquei sem dinheiro, sem comida. Jamais pensei que seria tratada assim".
Quando ela conseguia ligar para a família, não comentava nada para não assustá-los. Até que um dia, fingindo que ia ao mercado porque não havia nada para comer na casa, Monique ligou para o consulado do Brasil em Nova Deli. "Eu pedi ajuda do consulado porque eu não tinha condição de comprar a passagem de volta, meus pais não tinham condição. Minha mãe, quando soube da situação, ficou desesperada". O consulado iniciou uma investigação e descobriu outros casos de modelos que também sofreram maus tratos na mesma agência.
A modelo retornou para o Brasil e vive, hoje, com os pais na Bahia. Ela conta que ainda tem dificuldade em trabalhar, em se expor. "É uma sensação horrível você não poder pedir ajuda ou ligar pra sua família e não poder falar. Eu voltei para o Brasil bem traumatizada", conta.

ENGANADA PELA PORTUGUESA
Em agosto de 2011, Rosenilda Barbosa Alves prestou depoimento em audiência pública na Câmara Municipal de Salvador, na Bahia. Ela foi atraída por uma cidadã portuguesa a morar em Portugal, onde supostamente teria melhores condições de vida para ela e as duas filhas. No entanto, ao ter seu visto de turista expirado, Rosenilda teve que voltar para o Brasil, regularizar sua situação migratória. Foi convencida a deixar suas filhas sob os cuidados da mulher.
Mas não conseguiu voltar a Portugal e soube, então, que a portuguesa havia ingressado com pedido de adoção das duas crianças brasileiras. Para Rosenilda foi concedido apenas o direito de visitar as filhas. Apesar de o processo judicial já se encontrar na última instância de Portugal, o governo brasileiro até então ainda não havia tomado nenhuma medida eficaz a fim de reaver essa situação.

ORIGENS E DESTINOS
“As possíveis origens [das vítimas] são onde há vulnerabilidades econômicas, sociais, psicológicas”, afirma a delegada federal Vanessa Souza.
Já o também delegado Luciano Ferreira Dornelas afirma que não há rotas fixas para esse tipo de crime, pois “os aliciadores podem mudar esse caminho enviando a vítima para outro local e, posteriormente, por meio de outra pessoa contratada por terra pela organização criminosa, enviam a vítima para seu real destino”. Ele é autor dos livros “Tráfico de Pessoa – Cooperação Jurídica Internacional no Combate ao Tráfico” e "Manual de Combate ao Tráfico de Pessoa”.

Quando se trata de vítimas brasileiras, os destinos mais comuns são Portugal, Espanha e Itália. Sendo este último bem marcado pelos travestis e transexuais. Na região das Guianas, como Suriname e Guiana Francesa, muitas pessoas são levadas para trabalhar em garimpos.

OUTROS TIPOS DE TRÁFICO
Cerca de 80% das mulheres ou meninas traficadas destinam-se a exploração sexual. O restante das vítimas são homens, mulheres e crianças que trabalham em condições análogas à escravidão em áreas agrícolas ou fabris. “Nós não podemos mais analisar a questão da escravidão hoje como a figura daquelas pessoas que ficavam presas e acorrentadas em senzalas”, destaca o delegado Dornelas.
Mas a frequência do tráfico internacional de jogadores de futebol, modelos, bailarinos e cozinheiros de restaurantes étnicos também aumentou. Nesses casos, as vítimas são levadas para países como Armênia, China, Cingapura, Filipinas, Grécia e Índia. Em todos esses casos, há o confisco de passaporte, as jornadas são extenuantes, sem remuneração e em condições sub-humanas.
O deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), cita o exemplo de olheiros de escolhinhas de futebol que prometem aos garotos de famílias humildes que eles se tornarão grandes jogadores profissionais, ganhando fama e dinheiro. “É como se eles entregassem um bilhete premiado para essas frágeis famílias”, declara.  

ENFRENTAMENTO DO GDF
Em março de 2013, o Governo do Distrito Federal realizou a primeira blitz sobre o tráfico de pessoas no Aeroporto de Brasília. A proposta era levar informação sobre esse tipo de violência ao público.
O então subsecretário de Direitos Humanos da Sejus-DF, Todi Moreno, afirma que essa ação é o melhor remédio contra esse crime que viola o direito humano das pessoas. "Procuramos levar informação para elas e mostrar que, às vezes, podem estar sendo enganadas. Muita gente cruza o Oceano Atlântico em busca de sonhos e a gente percebe que quando ela chega ao seu destino não é bem o que foi prometido".
"As pessoas acham que não pode acontecer com elas. Mas, infelizmente, está acontecendo e a gente nem percebe. Os criminosos sabem persuadir, sabem trabalhar o psicológico da vítima e ela não denuncia, a família às vezes nem sabe o que está acontecendo”, diz o subsecretário.

QUANDO GENTE VIRA COISA
A CPI do Tráfico de Pessoas no Senado Federal já ouviu vários depoimentos. Um deles foi o de Antônio*. O filho dele encontra-se preso no Suriname depois de aceitar uma proposta de trabalhar como modelo fotográfico. Ele viajou sem o consentimento dos pais. "Alguém fez uma manipulação tão grande que ele não falou nada para nós, não comentou nada".
A esposa de Antônio*, Maria*, foi para o Suriname assim que soube da prisão e continua no país. O rapaz foi preso porque se envolveu em um assalto por estar passando fome e não ter os documentos pessoais para provar sua identidade.

ENFRENTAMENTO DA PF
A atuação da Polícia Federal ocorre por meio de interceptações telefônicas, depoimentos das vítimas e de outras pessoas envolvidas, interceptações ambientais (captação de imagens em determinados locais de maior ocorrência do crime), produção de relatórios dos achados e da investigação de documentos pessoais.
A Polícia Federal e os órgãos de enfrentamento ao tráfico de pessoas recebem denúncias de diversas fontes como o Ligue 180 e o Disque 100. “Atualmente, a mais importante, em volume, é o Ligue 180 da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Após o início da novela Salve Jorge, o volume de denúncias aumentou consideravelmente”, afirma a delegada federal Vanessa Souza.

OPERAÇÕES DA PF
Em 15 de maio de 2013, a Polícia Federal iniciou a Operação Liberdade para combater o tráfico de imigrantes de Bangladesh para trabalhar na construção civil no Distrito Federal. Foram encontradas 80 pessoas morando em seis casas em Samambaia, cidade satélite de Brasília.
De acordo com a investigação, a quadrilha aliciava trabalhadores no país asiático com falsas promessas de salários de US$ 1.000 a US$ 1.500, e cobravam até US$ 10.000 pela imigração ilegal.  Atualmente, o salário mínimo em Bangladesh é de cerca de US$ 38. As vítimas entraram ilegalmente no Brasil via Guiana Inglesa (Boa Vista/RR), Peru/Bolívia (Assis Brasil/AC) e Bolívia (Corumbá/MS), com a utilização imprópria do pedido de refúgio para regularizar a situação migratória. Foram identificados quatro "coiotes" (pessoas que intermediavam o tráfico), mas não foi feita nenhuma prisão.
Em outubro de 2012, o Ligue 180 recebeu uma denúncia vinda de Salvador/BA. Era a mãe de uma jovem levada para trabalhar em Salamanca, na Espanha. Três meses depois, a Polícia Federal deflagrou a Operação Planeta, juntamente com o Cuerpo Nacional de Policía (a polícia nacional espanhola). Ao final, foram fechadas duas casas de prostituição na Espanha e presos aliciadores nos dois países.

No mesmo mês, houve a Operação Sisifo em três casas noturnas de Imbituba e Imaruí, em Santa Catarina, onde 21 mulheres paraguaias eram exploradas sexualmente. Elas foram libertadas e voltaram ao país de origem. Cinco suspeitos foram detidos.
Já em março de 2013, a operação foi no município de Naviraí, Mato Grosso do Sul. Sete mulheres paraguaias trabalhavam em um bar, onde funcionava um prostíbulo. As vítimas viviam ilegalmente no Brasil, eram mantidas em cárcere privado e agredidas constantemente pelo proprietário do local, que foi preso.

COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
O delegado federal Luciano Dornelas destaca a importância desse tipo de cooperação no livro “Tráfico de Pessoa – Cooperação Jurídica Internacional no Combate ao Tráfico”, de autoria dele: “[...] é preciso que os governos dos Estados envolvidos nessa luta se comuniquem de forma adequada, respeitando a soberania ao mesmo tempo em que cooperam entre si”.

ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS
Ao mesmo tempo em que faz a repressão, o Governo montou os Núcleos de Enfrentamento e os Postos Avançados de Atendimento Humanizado aos Migrantes em alguns Estados para prestar assistência às vítimas.

Programas como o Pró-Vítima atendem, além das próprias traficadas, as famílias delas. A recuperação e reintegração das vítimas na sociedade incluem cuidados médicos, psicológicos, de assistência social e jurídica.


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