A Lei 11.340/2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”, vem sendo duramente criticada por pessoas que desconhecem a tragédia da violência de gênero no Brasil e no Mundo, ou por aqueles que propagam ostensivamente os direitos dos acusados, esquecendo-se por completo dos direitos das vítimas, ignorando-se que a concepção dos direitos humanos consiste numa via de mão dupla, onde se deve respeitar os direitos do réu, sem desconhecer jamais os da vítima.
Sempre tão esquecidas, a Constituição Federal, em seu artigo 245, lembrou das vítimas, ao determinar que "A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vítimas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito". Demonstrando legítimo interesse com a situação delas, sem prejuízo da competência do direito penal, como matéria de ordem pública, que chama para o Estado a responsabilidade pela prestação jurisdicional, detendo exclusivamente o direito de punir o autor do fato delituoso.
Como órgão de caráter consultivo, foi criado em 1979 a Sociedade Mundial de Vitimologia, tento sido aprovada a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delito e de Abuso de Poder, em 1985, pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas - ONU, existindo, ainda, a Sociedade Brasileira de Vitimologia, fundada em 1984, que estudam as vítimas, procurando resguardar-lhes os direitos fundamentais e garantir-lhes a cidadania, como uma forma de garantia dos seus direitos humanos. A vitimologia pesquisa o comportameno das vítimas, procurando modificar as normas vigentes para lhes favorecer ou simplesmente ambiciona a aplicação das leis já existentes, com a finalidade de garantir a assistência e efetiva proteção a vitima, buscando o reequilíbrio de interesse para sua causa, já que as preocupações precípuas dos operadores do direito e mesmo do legislador sempre foram com o autor do fato delituoso.
Nesse aspecto a Lei 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha” foi primorosa, ao demonstrar preocupação com a vítima em vários dispositivos, prevendo a compensação, restituição e o ressarcimento do dano que lhe for causado, além de conceder-lhe o efetivo acesso à assistência médica, psicológica e jurídica, não permitindo a banalização da violência doméstica e familiar, estabelecendo que o ente público envide esforços para garantir atendimento para a vítima e seus familiares, que, de forma indireta, são igualmente vítimas.
A Lei Maria da Penha assegurou o dever do poder público desenvolver políticas públicas para garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito de suas relações domésticas e familiares, trazendo a concepção ampla dos direitos humanos para ser aplicada antes mesmo de ocorrer à violência, como forma de evitá-la, reconhecendo seus efeitos danosos para toda a sociedade, garantindo às mulheres o enfrentamento pelo Estado das causas da violência, quando lhes assegura o direito de serem resguardadas de toda forma de violência e opressão, que produzem as condições mais favoráveis para a ocorrência da agressão. Estudos científicos de tais vítimas garantem que elas, enquanto vitimizadas, necessitam de tratamento especial por parte do poder público, sendo evidente sua fragilidade e inferioridade no setor doméstico e familiar, o que vem acarretar sua desigualdade social e ensejar a preocupação do legislador com a promoção de sua assistência, que permitirá que a mulher deixe a condição de inferioridade e dê um novo rumo para sua vida, em prol se si mesma, da família e de toda a sociedade.
Assim, a Lei Maria da Penha rompeu com o discurso intercorrente do direito penal e sua preocupação exclusiva com a ressocialização do delinqüente, promovendo a valorização da vítima, tutelando expressamente sua assistência e tratamento, garantido tais políticas públicas como obrigações efetivas de proteções eficazes, retirando-a da antiga função penal de servir tão somente como informante, para fins de produção de prova, onde era usada como instrumento de um sistema que não a protegia, por pessoas que a olhavam, mas não a viam, passando a reconhecer suas mazelas e assumindo que têm sim, tudo a ver com isso, que a vítima é sim, um problema seu (do poder público). Sem falar no desrespeito perpetrado contra as vítimas em juízo, sob a tutela permissiva do julgador, que assiste, não raras vezes de forma impassível à distorção completa do caráter da vítima, num sistema perverso que a transforma de vítima em acusada, sendo tida como a única causadora do crime, num procedimento freqüente, odioso, preconceituoso e cruel, que atenta contra os direitos humanos das vítimas consagrados por legislação constitucional e infra-constitucional, promovendo o que chamamos de sobrevitimização.
Aqueles que permitem tal dano à vítima parecem insensíveis às suas dores e mazelas e seguem sem entender que a vítima não sofre apenas no momento do fato delituoso, mas também danos físicos, psíquicos, econômicos e morais, o que faz com que depositem no Poder Judiciário suas derradeiras esperanças em busca de uma justiça que às vezes demora demais para chegar e outras vezes jamais aparece, gerando um descrédito nas instituições em face do triunfo das injustiças, que levam a disseminação da idéia da impunidade, que acaba por gerar ainda mais violência. Pois bem, em que pese este e outros inúmeros benefícios trazidos pela Lei 11.340/2006, ouve-se muitos comentários desabonadores em razão da Lei permitir (finalmente) a prisão em flagrante e preventiva dos autores de crimes de ameaça e lesão corporal leve, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, que jamais poderiam ter sido considerados como “de menor potencial ofensivo”, não revestido de maior gravidade.
A razão pela qual não deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho, do também delito, quando praticado por alguém da estreita convivência da vítima, como nos casos de companheiros ou ex- companheiros em prejuízo de mulheres advêm do fato de que no caso de delito praticado por estranhos, raramente voltará a advir, enquanto o praticado por pessoa da convivência da vítima, dado a proximidade dos envolvidos, tende a acontecer novamente, formando o ciclo perverso da violência doméstica, que pode acabar em delitos gravíssimos.
Um velho ditado popular propagou a idéia de que "cão que ladra, não morde". Esta é uma assertiva falsa, pois qualquer cão pode morder, ainda que não conste da lista de animais tidos como agressivos e que por isso não despertem maior temor das pessoas.
No caso da violência doméstica, tal como no caso dos cães, o dito popular não condiz com a realidade, pois em muitos episódios as ameaças e lesões, quando não tratados pelos operadores jurídicos com a devida importância, podem sim evoluir em gravidade e infelizmente se encerrar em fins absolutamente trágicos.
Aliás, uma das razões que levam a vítima a permanecer em um relacionamento abusivo e não procurar ajuda é justamente o receio (fundado) de não ser acreditada ou ter seus sentimentos com relação à importância dos eventos diminuídos, já que por ignorância, falta de preparo e de sensibilidade, os ouvintes freqüentemente minimizam os relatos de mulheres agredidas.
Estudos demonstram que após o rompimento da relação, mesmo muito tempo depois, é o momento mais perigoso para a vida da mulher, já que a maioria dos homicídios ocorre depois que o relacionamento afetivo termina, pois: “O medo do aumento do abuso caso deixe o marido é outro motivo pelo qual a mulher permanece no relacionamento. A separação é temida pela mulher, dado que o homem abusivo sente-se mais desafiado quando a mulher se libera do seu controle, ao sentir a perda da autoridade... Mais mulheres são mortas depois de abandonar o relacionamento abusivo, do que quando nele continuam.”
Em casos de extrema violência, a mulher espancada ou ameaçada pode ficar para manter as crianças, ou porque teme o risco de violência maior se tentar fugir do relacionamento. Infelizmente, esse medo é todo justificado. Dados indicam que o período mais perigoso para uma mulher que sofre agressão é durante os dois primeiros anos após ter ido embora (BROWNE; WILLIAMS, 1989). De acordo com a Investigação Nacional do Crime realizada em 1994 pelo Departamento de Justiça dos E.U.A., 70% dos incidentes relatados de espancamento ocorrem após a separação. De acordo com Hart do National Coalition Against Domestic Violence (1988, apud Walker, 1994), mulheres que abandonam seus agressores têm um risco 75% maior de serem assassinas por eles do que aquelas que permanecem.
É necessário que o operador jurídico finalmente se dê conta do verdadeiro flagelo que significa a violência doméstica e familiar contra a mulher, para que, finalmente, possamos discutir o tema de forma séria e técnica, para juntos avançarmos no combate efetivo a este grande mal que assola toda a humanidade. Mudanças são difíceis, sabemos, mas neste caso, muito necessárias, para que mais tragédias não continuem acontecendo, a cada minuto, em todos os dias, bem mais perto do que o leitor possa imaginar...
* Lindinalva Rodrigues Corrêa - Promotora de Justiça e Coordenadora das Promotorias Especializadas no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Cuiabá (MT)
Co-autora do livro “Direitos Humanos das Mulheres”, Juruá Editora, 2007